João Gilberto Noll falava da Máquina de Ser, aquele conjunto de memórias e sentimentos que nos confere a sensação da existência. Sem o ranger dessa máquina, Fernando Pessoa não teria construído seus célebres heterônimos. Sem ela, nenhum de nós conseguiria sustentar a própria identidade.
Uma memória me ajuda a pensar. No fim dos anos 1980, entrevistei a atriz francesa Henriette Morineau. Encontramo-nos nos camarins de um teatro do Flamengo. Ainda maquiada, Madame Morineau me recebeu com um discreto sorriso. E me entregou, assombrada e hesitante, um segredo que nunca esqueci.
Contou-me madame que, em Maceió, durante a apresentação de um clássico inglês em que encarnava a rainha Elisabeth I, viveu uma experiência mística. Em dado momento da peça, Morineau teve a certeza súbita de que já não era uma atriz interpretando uma rainha, que já não era mais Henriette Morineau, mas que se transformara na própria rainha.
Não teve coragem de revelar seu segredo a ninguém. Durante infernais semanas, teve certeza de que não era mais a atriz Henriette Morineau. Que se transformara, ou incorporara, a rainha inglesa do século XVI. Até que, certa manhã, do nada, Madame Morineau voltou a ser ela mesma. Nunca soube explicar o que lhe aconteceu. Acreditava ter vivido uma experiência espiritual. Algo como uma troca de almas.
A confissão de Morineau me deu coragem para lhe fazer, eu também, uma confidência íntima, que ela ouviu com carinho e abnegação. Desde a adolescência, leio, com paixão e espanto, a poesia de Fernando Pessoa. Desde jovem, impressionava-me, sobretudo, com os heterônimos do poeta. Um poeta com a alma fatiada, dividido em vários poetas. Ainda assim, Fernando Pessoa jamais duvidou de que era Fernando Pessoa.
Passei a frequentar um mestrado em São Paulo. Uma vez por semana, atravessava as noites em viagens de ônibus. Não conseguia dormir. Para preencher meu tempo, passei a inventar, à moda de Pessoa, que em cada viagem eu era um homem diferente. Um heterônimo. Já antes da partida, tratava de puxar conversa com meu companheiro de banco. “Sou astrônomo”, eu dizia. E na viagem de volta: “Sou um industrial”. Fui padre, mágico e deputado. Fui traidor e traído.
Muitos deles logo desconversavam. Mas havia os que, ao contrário, caíam em minha armadilha. Um dia, um amigo querido me advertiu: “Cuidado, você está jogando com a morte”. Sugeriu que, se eu queria ser outros, devia estudar teatro. Mas o perigo não estava fora de mim, estava dentro. Fui um jovem deprimido e inseguro. Nunca estava certo a respeito de quem era. Até que um dia, houve uma pane: fatiado entre tantos personagens, eu me perdi de mim mesmo. Já não sabia mais quem era.
Assustado, consultei um psiquiatra. Falei de minha fixação em Pessoa. O doutor me disse: “Fernando Pessoa só devia ser lido por homens maduros. Seus heterônimos destroem as almas fracas”. Ainda assim, nunca parei de ler Pessoa. Mas as palavras do médico – não tanto um diagnóstico, e mais uma ameaça – ficaram cravadas em meu peito
Depois de ouvir minha história, Madame Morineau admitiu: “Seu caso foi mais grave que o meu. Eu, pelo menos, fui apenas duas”. Em seu caso, ela assinalou, houve uma troca de almas. Mas, no meu, houve um desmoronamento. “Pessoa o roubou de si mesmo, e nada colocou no lugar”, ela disse.
Não sei se adoeci de Pessoa, mas sua leitura despedaçou meu espírito. Nunca mais voltei ao psiquiatra que viu em mim, como disse, um “mal literário”. Hoje reconheço que a literatura nos expõe a graves riscos. Já de cabeça branca, ainda é com uma mistura de cuidado e assombro que continuo a ler Fernando Pessoa.