Afasta-te de ti

A literatura ajuda a ver o mundo. Ela o perfura e o interroga. A realidade se abre. Agora mesmo, lendo Fome, o romance do norueguês Knut Hamsun, de 1890, confronto-me com a imobilidade atávica que define o Tempo. O Tempo só avança, pensamos. Na verdade, as coisas não saem do lugar. Ou retrocedem. Talvez o Tempo seja só um engano. Uma ilusão que nos distrai.

O narrador de Hamsun é um escritor miserável que vaga por Cristiânia – a antiga capital da Noruega. A fome o alucina. A mesma fome que, hoje, encontramos nas ruas. Com a “imaginação extraviada”, como ele mesmo diz, inventa artifícios para não sucumbir. Chega a comer lascas de madeira, que arranca de cercas pelo caminho. “Engolia a saliva constantemente, encontrando assim um ligeiro alívio.” Engana-se – mas a fome não se engana, continua a roê-lo. A fome é um rato que passeia em suas vísceras. Da fome, o escritor vagabundo arranca seus escritos.

Não estou em Cristiânia, mas em Copacabana. Não no século XIX, mas no XXI. Acabei de almoçar. Almocei bem. Ainda assim, uma fome, a mim também, acossa. Atravesso a Praça Serzedelo Correa. Encolhido em um banco, um rapaz molambento me encara. Vou até ele e pergunto: “Como posso te ajudar”? Olha-me surpreso. Vacila. “Nunca ninguém me pergunta nada”, ele diz. Tenho que falar por ele, tenho que lhe emprestar minha boca, para que consiga me pedir o que não consegue pedir. “Posso lhe pagar um prato de comida?”

Assustado, o rapaz, se abraça ao cobertor. Encara-me. Não consegue entender o que pergunto. “Nunca ninguém fala comigo”, ele insiste. Sento-me ao seu lado. Estou com meu exemplar de Fome sob o braço. “Você costuma ler?” – pergunto. O rapaz – que poderia ser Hansun – não se interessa pelo livro que lhe mostro. Não sente nada, só me olha. Entrega-me seu vazio – sua fome. Como se ela fosse um atestado, ou uma confissão.

“Vamos até um botequim e lhe compro uma quentinha”, digo. Não se move. Ao contrário, se enrola mais ainda no cobertor. “Você não quer comer?” – pergunto. O rapaz balbucia algumas silabadas, incompreensíveis, palavras que não pode, ou não tem coragem de dizer. Por fim, me diz: “O que vai adiantar comer hoje, se amanhã não poderei comer?” Imitando Hansum, ele me mostra que sua fome ultrapassa a questão biológica. A fome não é de um prato de comida, mas de um alimento que perdure. A fome do rapaz se relaciona ao Tempo e ao modo como nele nos dependuramos. Relaciona-se ao futuro, e não ao presente.

Começo a entender que, para me aproximar do rapaz, preciso me afastar de mim. Sou um homem moderno – sou imediatista, pragmático, prático. Sou um estúpido, um inocente, é o que o rapaz da praça me mostra. “Não, obrigado, não vou”, é tudo o que ele me responde. Ocorre-me o título de um dos mais belos romances de Hilda Hilst: Tu não te moves de ti. Talvez seja isso. Quanto mais tento sair de mim e chegar ao rapaz, mas volto a mim mesmo e à minha própria cela.

Convido-o para uma caminhada. “Já que não quer comer, andamos um pouco.” Ele me olha desconcertado, mas larga o cobertor imundo e me segue. “O que o senhor quer de mim?” Sou um homem ridículo. Quero ajudá-lo, mas minha ajuda não o ajuda. Minha ajuda só disfarça seu sofrimento. “Se eu aceitar sua comida, amanhã sentirei mais fome ainda”, ele diz. Tem um controle sobre o Tempo que me choca. Tento mover-me de mim e chegar até ele, mas fracasso. Só o garoto sabe o preço das horas. Hilda Hilst estava certa.

Agarro-me ao livro de Hansun. Estendo-lhe a mão, mas ele recua. Olha-me com desespero e piedade. Dou-lhe as costas e me vou. Subo a praça arrastando minha fome. Com sua fome maior e mais funda, o garoto volta a dormir.