Apagar o fogo

Em suas Memórias, Carl Gustav Jung, o primeiro grande parceiro intelectual de Sigmund Freud, relata a história de uma redação escolar que, aos 17 anos, redigiu com o máximo empenho e esforço, tanto empenho e tanto esforço que seu professor, apesar de elogiá-la com ênfase, ou por isso, em seguida o acusou de fraude. “Senti que, a partir desse momento, eu estava marcado a fogo, e que todos os caminhos possíveis para fora de minha solidão haviam sido cortados”, rememora Jung.

Embora soubesse perfeitamente que não plagiara nem uma só linha, o jovem Jung, desde então, passou a desconfiar de si mesmo. Essa desconfiança, dúvida intensa, embora dolorosa, está na base de seu pensamento. “Eu me via como um possuidor inconsciente de odiosas qualidades que afastavam de mim mestres e colegas”, relembra. Não é fácil chegar a si, não é simples e inócuo tomar posse de si mesmo. Destacar-se da grande massa é sempre um grave perigo. Esse ato envolve um preço alto e desolador: isolar-se, não ser compreendido, conformar-se com a solidão.

Ainda pensando na história de Jung, vem-me à mente alguns versos de Jorge Luis Borges. Em “O tigre”, poema que está no livro História da Noite, Borges conta a história de um tigre que, “delicado e fatal”, caminhava por sua jaula no zoológico de Palermo. “Pensamos que era sanguinário e belo”, diz o poeta, depois de um primeiro olhar. Logo em seguida, porém, Borges é fulminado pelo comentário brusco de uma doce menina que observava a jaula. “Ele é feito para o amor”, a garota lhe disse. O poema de Borges expressa não só a confusão, mas a ambiguidade dos sentimentos. O professor de Jung pode, ao mesmo tempo, amar e odiar a redação que o jovem aluno lhe apresentou. Havia beleza, mas justamente porque havia beleza, ele concluiu, havia uma fraude. Uma farsa, um ardil eram encobertos pelo belo. Haja nervos para viver em um mundo assim. O nosso mundo.

No nosso mundo da normalidade, dominado pelo standard e pelo banal, corre um grande risco quem decide se destacar. Um risco de anulamento e de morte. Volta-me à mente, agora, algo que eu mesmo vivi em minha remota infância. Para fugir do sadismo infantil e do bullying, eu, um menino fraco e acanhado, tratava de me apagar, para não aparecer nem pela falta, nem pelo excesso. Meu grande sonho era desaparecer, anular-me, tornar-me invisível. Usar uma máscara que funcionasse como um escudo. Sonho de não ser bom e nem ser mau. Não ser belo, nem feio. Não ser brilhante, nem estúpido. Apagar meu fogo. Em resumo: meu sonho de menino era não ser.

Só me vestia de cinza, ou de marrom. Nos corredores do colégio, caminhava pelos cantos. Era sempre o último das filas. Escondia-me nas sombras, nos becos e atrás das cortinas. Não falava com ninguém – muitos me julgavam mudo. Certo dia, um professor, revoltado com a minha apatia – que era só aparente, pois na verdade era astúcia –, me perguntou: “Você existe mesmo?” Minha resposta o chocou: “Quisera não existir, professor”. Era uma resposta complexa demais para um menino. Reagiu: “De onde você tirou isso, garoto?” Silenciei. Sem saber o que fazer comigo, o pobre professor me mandou de volta para meu lugar.

Agora, confrontando as memórias de Jung com o poema de Borges, entendo que meu destino já estava traçado desde muito. Meninos apagados e esquivos como eu sofrem, na verdade, de um grande medo: o de se destacar na multidão. Você pode se distinguir para o bem, ou para o mal. Pode despertar o amor ou, ao contrário, despertar a repulsa e o ódio. Nasci com a alma inquieta, não aceitava a rotina que me ofereciam como mundo. Mas, para não ser espancado, tive que me engolir. Tive que não ser. Hoje, tantos anos depois, quando penso em minha infância, penso em um grande deserto. Afetos ferozes fervilhavam em meu interior. Mas eu os engolia, eu os mastigava e destruía, como um pequeno tigre.