As pessoas não concordaram com os meus argumentos sobre o teatro do polonês Grotowski. Acharam que eu confundi dramaturgia com religião, deixando de esclarecer opostos como ascese e orgia, que ao final convergem para um mesmo ponto onde Apolo e Dioniso, São Francisco e Sade se tornam semelhantes. O ambiente de uma bienal de livros não era dos melhores para falar sobre a questão complexa: havia barulho em excesso, os microfones reverberavam, um maracatu percutia suas alfaias. Dentro de um quadrado de vidro semelhante a um aquário, éramos olhados de fora pelos que circulavam. Febril, enfermo, medicado com corticosteroides, eu não conseguia compreender aquele espaço como lugar para livros e leitores.
Segundo Peter Brook, o trabalho de Grotowski levou-o cada vez mais profundamente para o mundo interior do ator, ao ponto em que ele cessa de ser ator para se tornar o homem essencial. Na medida em que esse exercício se intensifica, tudo o que é exterior deve desaparecer, para que no fim não exista mais nem teatro, nem ator, nem público – nada além de um homem solitário interpretando seu último drama, sozinho.
Convalescente da escrita de um romance, ainda não me sentia liberto dos demônios que me obsediaram durante meses, consumindo horas e dias. Divaguei, perdi-me em espirais a cada pergunta do mediador. Só agora percebo que continuava escrevendo o romance finalizado há dois meses, tentando pôr ordem ao complexo universo que teimo em visitar. Não estava praticando o ensinamento de meu editor na CosacNaify, Augusto Massi, que me ensinou maneiras de fugir às perguntas sobre regionalismo, coisa para a qual já não dou nenhuma importância, desde que me convenci de que sou um neobarroco. Queria falar apenas sobre o mergulho de que tentava emergir. Por isso a insistência em Grotowski, que considera o ator um mártir, para quem o espectador não pode presumir identificar-se, mas apenas testemunhar com terror uma coragem heroica e o sacrifício que lhe é oferecido de presente.
Confundo ator e autor.
Há santidade em Dostoievski, Nietzsche – considerados loucos e criminosos por Thomas Mann –, Kafka, Guimarães Rosa, Joyce... Que poetas ainda exercitam a santidade, referida como entrega total à poesia, seja ascese ou dissolução? Me ocorrem nomes como João Cabral, Bandeira, Drummond, Jorge de Lima, Ângelo Monteiro... Também lembro de um poeta alagoano, José Inácio Vieira de Melo, parecido no ofício com Ascenso Ferreira, embora não guardem semelhança nos versos, ambos viajantes, declamadores, cantadores, aboiadores. Zé Inácio, no sentido oposto ao de Grotowski, partilha a sua solidão e nos conduz a sentimentos aguçados, em que a beleza se cumplicia com a sagração.
Quantos nomes terei que atravessar
para encontrar o meu nome?
E para encontrar o Nome
terei que esquecer todos os nomes?
Numa antologia recente, O filho do sol, comemorativa aos 55 anos, visita desde Códigos do silêncio, de 2000, até o mais novo Garatujas selvagens.
O tempo está passando e continua o mesmo,
as minhas dores é que são cada vez mais reais.
Em poetas como Zé Inácio, semelhante aos aedos gregos, menestréis medievais e cantadores nordestinos há uma entrega da vida através da poesia, completa e despojada, numa mesma experiência inseparável entre a introspecção e o movimento para fora de si mesmo. Brook reflete que a beleza não é mais que um subproduto. Ela progressivamente tomou o lugar do sagrado. O sagrado não é belo, está para além do belo. A Grotowski não importava os gritos de “ah, como é belo!”, “ah, como é bonito!”. Ele que só buscava a essência da criação, sentia-se ferido e insultado por esses arroubos de admiração, tão estranhos ao seu teatro.
Pura santidade.