O leão e o chacal mergulhador

Mamede Mustafa Jarouche contribuiu com a literatura brasileira, traduzindo o Livro das Mil e uma noites. Schopenhaeur desprezava as obras traduzidas, pois achava que os tradutores pretendiam corrigir e reelaborar os autores. Percebemos em Jarouche o cuidado obsessivo em manter-se fiel aos originais árabes, dando-lhes fluência e encantamento sem escrever uma nova versão, como fez Antoine Galland.

Uma outra façanha de Jarouche é a tradução de O leão e o chacal mergulhador, texto árabe sem a assinatura do autor, que ganhou formato definitivo na Bagdá do século XII, 400 anos depois de sua fundação pelo califa abássida Almançor. Não se trata de uma coletânea de histórias do gênero maravilhoso, como As Mil e uma noites, mas de pequenas narrativas sapienciais, ao estilo das fábulas clássicas, contendo ensinamentos de toda natureza, provérbios e lições morais.

O personagem a partir do qual se elabora um fio narrativo, aglutinando as pequenas narrativas, é o Mergulhador, um chacal sábio, virtuoso, praticante do ascetismo, que se aproximou do rei-leão com o fim de aconselhá-lo, ajudando-o na administração do reino, em meio a uma corte de intrigantes, sempre maquinando sua queda. O estilo próprio da cultura árabe pode tornar-se cansativo para um leitor moderno, sobretudo ocidental.

Pegamos ao acaso “O carcereiro corrupto”, trama em que se envolvem um lobo e um tigre, servidores do rei-leão, suspeitos de deslealdade. Esses animais simbolizando homens são postos à prova pelo Mergulhador, que age como estrategista de guerra, discutindo com o rei maneiras precisas de bem governar. Por seu lado, os nobres da corte montam ardis para levar o Mergulhador à perdição, intrigando-o com o rei, que nem sempre se mostra capaz de discernimento e bom juízo.

A leitura claudica com a infinidade de sentenças, que de tão repetidas se tornam maçantes: o homem é morto por sua própria artimanha; tu és mais capaz de derrotar um inimigo poderoso que esteja descuidado que um inimigo fraco que esteja vigilante; não há como conviver com o soberano e desconfiar dele; o dotado de virtude está próximo do coração do soberano tanto na hora em que é desnecessário como na hora em que é necessário; tu és mais capaz de não fazer o que irás fazer do que reverter o que já fizeste.

Lembramos O príncipe, suas estratégias de governar. Anterior alguns séculos à publicação de Maquiavel, embora aborde o mesmo tema, não alcançou o sucesso do italiano, pelo isolamento da cultura oriental, em relação ao ocidente. A apresentação do capítulo 15 ilustra a aproximação.

“Capítulo sobre as artimanhas dos colaboradores dos reis uns contra os outros, e do qual consta uma conclamação aos reis para que se assegurem do que lhes é transmitido a respeito dos seus colaboradores e o constante exame deles, e os prejuízos decorrentes das coisas que se maquinam contra eles; este capítulo contém as coisas mais drásticas utilizadas pelos inimigos no ataque aos reis.”

Ao reler e reler o poema em prosa, pensamos o quanto seria bom se os políticos brasileiros o adotassem como livro de cabeceira. Jean-Claude Carrière eliminou da sua coleção Contos filosóficos do mundo inteiro as fábulas que sugerissem uma moral, uma recomendação de prudência comum, criadas com o objetivo determinado de extrair uma conclusão, dar um conselho, expressar uma pequena ideia, associada à noção de conveniência ou de bom senso. Tudo o que O leão e o chacal mergulhador é em excesso. No entanto, é possível reconhecer o mesmo conteúdo de numerosos tratados de ética e filosofia. Daí sua grande atualidade e mérito.