Antônio Maria foi um dos mais singulares cronistas e compositores brasileiros, não somente de sua época e geração, mas entre os tantos que escreveram na imprensa, antes do advento da internet e da mídia digital (onde faz relativo sucesso póstumo). Seu múltiplo talento, de certo modo único, não se resume às linhas deixadas impressas nos principais jornais e revistas da época – notadamente entre abril de 1948, quando ancorou de vez no Rio de Janeiro, então Capital da República, e 15 de outubro de 1964, data de sua morte, vítima de um infarto em frente ao restaurante Le Rond Point, em Copacabana.
Maria começou profissionalmente ainda na adolescência. Aos 13 anos, estreou como locutor e disc-jóquei na Rádio Clube de Pernambuco – PRA-8, onde entrou via “pistolão”, como confessou. A facilidade e a originalidade com que se comunicava no ar o levou a escrever textos e notas sobre artistas e produções radiofônicas, estreando no jornal Folha da Manhã, do Recife, em 1944, assinando a coluna Irradiações. No pequeno espaço que tinha, foi exercitando e construindo o seu estilo e abrindo caminho para que chegasse à crônica.
Quando se fixou de vez no Rio de Janeiro, passou a frequentar a boêmia carioca, primeiro na Lapa, depois em Copacabana, fazendo parte de grupos de intelectuais, jornalistas, cantores, compositores, músicos e produtores, além de atores e atrizes, que tanto atuavam no teatro quanto nos programas de radioteatro.
Hábil com as palavras e sentindo-se à vontade no meio musical, não tardou para revelar um outro talento: o de compositor, um dos principais nomes do samba-canção, não se limitando, contudo, a esse gênero, embora mal arranhasse o violão. Quando a televisão estreou no Brasil, Maria foi pioneiro. O primeiro diretor da TV Tupi se dividia entre os atribulados afazeres, levando ao novo veículo o seu talento para o humorismo, as entrevistas e os programas musicais que faziam sucesso nas ondas do rádio.
Maria viveu intensamente seus 43 anos de vida e quase 30 anos de carreira. O tempo foi curto para publicar pelo menos um livro, fosse uma reunião de crônicas ou um projeto autobiográfico, que prometera escrever e nunca conseguiu realizar. O primeiro livro com seu nome na capa veio a público, postumamente, e cerca de 10% dos três mil textos para jornais e revistas ganharam edições em coletâneas – O Jornal de Antônio Maria (Saga, 1968), Pernoite (Martins Fontes, 1989), Com vocês, Antônio Maria (Paz & Terra, 1994), Benditas sejam as moças (2003), Seja feliz e faça os outros felizes (2005), ambos lançados pela Civilização Brasileira, que também publicou O Diário de Antônio Maria (2002), e Vento vadio (Todavia, 2021).
A crônica é uma janela aberta para a intimidade com a palavra, a coloquialidade. Por definição, é um gênero híbrido, que bebe na fonte do real e se alimenta da imaginação e da ficção. Antônio Maria colocou um ingrediente a mais: as cores da autobiografia e de suas relações pessoais – notadamente artistas e profissionais ligados ao rádio e, depois, à televisão –, alargando o horizonte da crônica com tintas da alegria, do humor, da ironia, e também da desilusão, da saudade, do sofrimento, da melancolia. Ao longo da vida, Maria assinou 14 colunas em jornais e revistas. Estreou em Pernambuco, com Irradiações (Folha da Manhã). No Rio de Janeiro, foi o titular das colunas Rádio (O Jornal-RJ), E Passamos a Apresentar! (Última Hora), A Noite é Grande (Diário Carioca), O Jornal de Antônio Maria (Última Hora, Diário da Noite e O Jornal), Mesa de Pista (O Globo), Romance Policial de Copacabana (Última Hora), Pernoite (Última Hora) e Plantão Noturno. Apesar dos temas variados das crônicas, a vida noturna que frequentava e detalhes da sua infância até os últimos momentos de sua vida são tão reveladoras quanto as entrevistas que concedeu, principalmente às revistas especializadas na cobertura do mundo do rádio.
“A vida de Antônio Maria é o centro de sua obra”. A sentença é assinada pelo jornalista Joaquim Ferreira dos Santos, autor do perfil biográfico Um homem chamado Maria (Objetiva, 2005). Não poucas vezes, o cronista se fazia de vítima de suas próprias escolhas e desilusões. “Sofria as consequências do abandono e das questões do jogo amoroso”, diz Ferreira dos Santos. As crônicas serviam para purgar esses momentos difíceis da vida. “Parecia que ele sarava estas dores escrevendo. Era uma terapia, a maneira que ele botava esse coração para fora”, diz o biógrafo.
O professor Luciano Antônio, que defendeu a tese A cidade nas crônicas de Antônio Maria, na Universidade Estadual de Londrina (PR), vê o cronista pernambucano próximo do que se classifica hoje como autoficção, escrevendo “textos que sustentam a ambiguidade entre o espaço da ficção e as referências extratextuais”. “Na perspectiva tomada por Maria, há um entrecruzamento entre o tema e o escritor, pois o cronista observa e reescreve a si mesmo. O leitor tem a impressão de que está diante de um texto ficcional, embora seja inegável o fato de estes escritos terem caráter autobiográfico, sempre vale frisar que se trata de crônicas”, diz o professor.
O próprio Antônio Maria dizia que “escrevia para aliviar a memória”, notou a pesquisadora e professora aposentada da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Vera Lins, no artigo “Antônio Maria: Baudelaire nas noites do Rio”, incluído no livro Cronistas do Rio (José Olympio, 2001). O cronista pernambucano e o poeta francês guardam, segundo Vera, características comuns. Maria e Baudelaire são flâneurs, boêmios e melancólicos; um a vagar pelo Rio de Janeiro (Copacabana, em particular), o outro, por Paris; usufruem da vida moderna, é fato – um no século XX, o outro no século XIX –, mas são críticos a certos aspectos dela, como a busca pelo lucro fácil, o tratamento dado ao artista e ao escritor, em particular, como mercadoria, e o comércio da arte.
Sobre o gene autobiográfico de Antônio Maria, Vera Lins escreve: “Faz crônica de si mesmo, enquanto faz a crônica da cidade ou, melhor, de um bairro: Copacabana dos anos 1950! Vira do avesso a imagem de Paraíso da modernização, quando fala da hipocrisia, da solidão, da miséria, dos que habitam”.
A crônica no Brasil definiu seus contornos nos jornais ainda na época do Império. Uma abordagem essencialmente urbana, da vida e dos costumes. Teve nos anos 1950 a 1980 do século XX um período de apogeu. Antônio Maria é um de seus principais nomes (ainda que injustamente relegado ao segundo plano), ao lado de Rubem Braga, Nelson Rodrigues, Carlos Drummond de Andrade, Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende, Fernando Sabino, entre outros contemporâneos.
Maria se colocava entre o cronista e o repórter. No início de sua carreira, voltada ao universo do rádio, chegava a atuar como um divulgador do trabalho de cantores, compositores, radioatores e produtores, assumindo uma postura de paladino e juiz, demarcando o lado em que lado estava. Valorizava o casting do patrão, mas não deixava de comentar – de forma elogiosa ou crítica e negativa – os rivais.
Boêmio, Maria “batia ponto” nos principais endereços da boemia até o amanhecer, tirando a matéria bruta para as crônicas. Num deles, O Pavão Azul, em frente a uma delegacia de polícia, montou seu escritório para escrever as crônicas da coluna “Romance Policial de Copacabana”. Frequentava locais da moda, como as boates Vogue, Sacha’s, Night and Day, e bares como o Vilariño, onde se encontrava com Fernando Lobo, Vinicius de Moraes, Millôr Fernandes, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Sérgio Porto, entre outros. E mesmo sem ser “sócio-fundador”, tinha livre trânsito no Clube da Chave, onde Vinicius conheceu Tom Jobim.
O cronista notívago também observava a vida com o sol a pino, após virar a madrugada, com olhos de ressaca, flagrando a manhã em Copacabana e as mazelas do cotidiano, a carestia de uma inflação sem controle, o desemprego, as promissórias a pagar, a falta d’água recorrente, o calor do verão, a fila do ônibus, o aumento da violência e dos roubos, o apressar da vida moderna com os anos. Como contraponto, voltava o olhar à mulher sensual, de barriga de fora, a caminho do mar; às estudantes pedindo carona para ir à escola, aos casais de namorados e tipos que flagrava ou imaginava – o marido traído, o tolo, o torcedor fanático, o amante apaixonado, a mulher adúltera, as garotas da noite etc. Deixava, contudo, emergir uma visão machista, preconceituosa, condescendente.
O sucesso de Antônio Maria nos jornais, revistas, rádio e televisão cruzava a fronteira do Rio de Janeiro. Durante um período de sua carreira, recorreu à ponte aérea Rio-São Paulo para cumprir compromissos profissionais na efervescente capital paulista. Embora reconhecesse o conforto e a rapidez do avião, o bom Maria preferia pegar as sinuosas curvas das estradas que ligavam as duas capitais, principalmente o trajeto pela Rio-Santos.
Normalmente realizadas em seis horas, algumas viagens eram feitas em pouco mais de quatro horas no seu velho, mas disposto Cadillac, e serviram de mote para crônicas – uma delas, quando comemorou ter cumprido 60 vezes o percurso. Maria descrevia paisagens e comentava sobre os locais de parada, suas comidas e os tipos que lá estavam, retirantes enfrentando o frio da madrugada e a fome. A memória remetendo-o às vivências em Pernambuco. Um copo de caldo de cana com pão doce era o suficiente para evocar o aroma da cana de açúcar se transformando em melaço e açúcar. Segundo Maria, a “estrada é para quem está em estado de graça”. “Das suas noites, do que se disse e sentiu em suas idas e vindas, nasceram minhas pobres canções”, confessou o cronista.
Se passear de carro era um dos hobbies de Maria, o bar, a boate, a vida noturna, para ele, eram um compromisso profissional. O Rio de Janeiro era a capital do Brasil e, o coração onde tudo pulsa, Copacabana. Já o umbigo do mundo seria o Recife, onde nasceu em berço de ouro, viu a família falir, parentes morrerem e acompanhou os desdobramentos da Segunda Guerra. Adolescente, iniciou-se na vida noturna e frequentou os cabarés do Recife, teve suas primeiras brigas (e prisões, uma delas confessada na emotiva crônica “Dia das Mães”) e começou no rádio.
Antônio Maria era em tudo uma pessoa compulsiva. Dedicava-se ao trabalho com a mesma volúpia que frequentava a noite, os cabarés e restaurantes, e investia na conquista de mulheres. Workaholic, escrevia até na banheira, para cumprir seus compromissos. Por conta da sua vida desregrada, morou uma boa parte de sua vida em hotéis, no Rio de Janeiro, ou recorria à casa da amiga cantora Aracy de Almeida, sempre pronta a lhe dar guarida. Vivia apertos para pagar as despesas da família e as farras sem fim, com muitos “papagaios” pendurados, mesmo recebendo um dos maiores salários do rádio e da TV na época, e escrevendo em diversos veículos da imprensa simultaneamente.
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