Deu no News York Times: “Um fazendeiro rico, sua esposa e seus dois filhos foram achados mortos hoje em sua casa. Eles foram assassinados por tiros de espingarda à queima-roupa depois de terem sido amordaçados e amarrados”. Após ler a pequena nota publicada em 16 de novembro de 1959, o escritor norte-americano Truman Capote (1924-1984) decide fazer as malas imediatamente e seguir para Holcomb, Kansas, nos confins dos Estados Unidos. Ele foi acompanhar de perto as investigações sobre a chacina da família Clutter, conversar com as testemunhas e até com os então suspeitos Perry Smith e Dick Hickock – depois condenados pelo crime. “Algum instinto misterioso me conduziu para o meu tema”, justificou o autor, sobre o que o levou a transformar aquela pequena notícia em um romance-ficção. A sangue frio (1966), hoje um indiscutível clássico do jornalismo literário, tornou-se também referência para a própria literatura sobre crimes, sejam eles reais ou ficcionais.
O gênero que alia o relato de fatos reais a técnicas de ficção surgiu muito antes de Capote promover sua popularidade na década de 1960. Lá no século XVIII, época dos folhetins, literatura e jornalismo já tinham se aliado no intuito de florear os acontecimentos da vida mundana. Era a rede social daqueles tempos de narrativa deveras amadora, que vinha impregnada de sensacionalismo, sem a menor preocupação com a checagem dos fatos. O que importava era vender feito pão quente. Felizmente, o jornalismo literário – atualmente jornalismo narrativo, para não confundir com jornalismo sobre literatura – evoluiu e segue pautando livros, reportagens, pesquisas e estudos acadêmicos, além de discussões críticas sobre a fronteira entre realidade e ficção.
Isso, graças a Capote e seus pares Tom Wolfe, Gay Talese, Janet Malcolm e Joseph Mitchell, nos Estados Unidos; Euclides da Cunha, José Hamilton Ribeiro e Joel Silveira, no Brasil; Gabriel García Márquez, na Colômbia; e Javier Cercas, na Espanha. Todos eles deram um tom de seriedade à relação entre realidade e ficção ao promover abordagem mais aprofundada dos fatos, adicionando diálogos, descrevendo cena a cena e construindo protagonistas que, de tão humanos, quase podiam sair do papel. “Foi a partir de A sangue frio que o jornalismo sobre crimes reais passou a ser respeitado. Anteriormente, não existia o cuidado de ouvir fontes e ir atrás de documentos em profundidade. Os escritores se amparavam apenas em especulações”, afirma a professora de mestrado em comunicação da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), Luana Viana, que pesquisa o tema true crime e assina o título Jornalismo narrativo em podcast: Imersividade, dramaturgia e narrativa autoral (Editora Insular, 2023).
Tom Wolfe, aliás, foi quem cunhou o termo “novo jornalismo” (New Jornalism, em inglês). No livro Radical chique (1971), Wolfe faz uma reportagem sobre o apoio que a elite financeira de Nova York deu aos Panteras Negras. O grande cronista Joaquim Ferreira dos Santos disse sobre Wolfe: “Se os Beatles colocaram uma colher de LSD na música, Tom Wolfe pôs um pote no jornalismo”.
A sangue frio não consegue se safar das críticas que o acusam de omitir acontecimentos e se envolver intimamente com um dos assassinos – com Perry, dizem, houve até um envolvimento amoroso – e pesar a mão na descrição detalhada da violência. Em sua defesa, Capote afirma que a não ficção pode conter tantos elementos artísticos quantos os que contém a ficção. “O jornalismo se move no plano horizontal, conta as histórias; a ficção – a boa ficção, move-se verticalmente, mergulha fundo nas personagens e nos fatos. Ao tratar um fato real com essas técnicas (o que o jornalista não pode fazer até aprender a escrever), é possível fazer essa síntese”, definiu o norte-americano que completaria 100 anos no dia 30 de setembro deste ano.
“Se eu bem entendi a obra, Capote vendeu o seu livro dentro de um certo sentido de intencionalidade: a de ‘o caso eu conto como o caso foi’”, resume o professor de pós-graduação em Letras da UFPE Anco Márcio Tenório. Segundo ele, A sangue frio influenciou a própria literatura. “Nada obstante todas essas imprecisões conceituais que rondam a obra, o fato é que, mesmo não sendo vendida como ficcional, influenciou o modo como os autores ficcionais passaram a pensar e a escrever ‘estórias’ de crimes e de investigação policial”, esclarece.
Um par de décadas mais tarde, quem voltou a colocar o jornalismo literário em foco foi a norte-americana Janet Malcolm (1934-2021), que escreveu diversos títulos sobre o assunto. “Além de utilizar técnicas ficcionais para escrever reportagens, Janet se utiliza da metalinguagem ao refletir sobre a própria escrita. Ela não só narra, apura e escreve muito bem. Ela polvilha no texto elaborações sobre a própria escrita, trazendo características de ensaio à reportagem”, aponta o jornalista e doutorando em Literatura na USP, Victor Calcagno, estudioso da obra da autora. Diferentemente de Janet, Capote tomou liberdades demais em A sangue frio. “Ele foi acusado de ser explícito demais e usar de mau gosto para revelar detalhes do crime”, compara.
Janet é autora da sentença que ainda deixa o pessoal da imprensa de cabelo em pé: “Qualquer jornalista que não seja demasiado obtuso ou cheio de si para perceber o que está acontecendo sabe que o que ele faz é moralmente indefensável”. No livro O jornalista e o assassino: Uma questão de ética (1990), Malcolm narra a história do médico Jeffrey MacDonald, condenado pelo assassinato da mulher e duas filhas, que entra na justiça contra o jornalista Joe McGinniss, que, por sua vez, escreveu um livro sobre Jeffrey, baseado em entrevistas realizadas ao longo do julgamento e na prisão. A própria Janet foi acusada de atribuir a um entrevistado falas que, supostamente, não foram ditas. Após uma década de batalha judicial, finalmente foi inocentada. Autora de oito livros, sua obra até hoje é referência para o jornalismo narrativo.
A relação entrevistador/entrevistado, que deixou Capote em apuros éticos, é, segundo Victor Calcagno, a mais difícil de lidar. “Existe uma paz armada entre jornalista e entrevistado. Essa união nunca é fácil e costuma gerar problemas. Temos que franquear esse campo de batalha. É um jogo que precisa ser jogado e o entrevistado precisa estar ciente desse jogo”, reflete o jornalista. “Sendo os assassinos as principais fontes do autor, como saber se A sangue frio conta a história tal como ocorreu ou se é uma ficcionalização de um fato?”, questiona Anco Márcio Tenório.
Ao transitar nesse limite tênue entre ficção e jornalismo, não é raro os autores criarem até personagem. Joseph Mitchell não se fez de rogado no livro-reportagem O segredo de Joe Gould (1964). “Ele inventou um boêmio culto, excêntrico e pobre que vagava pelas ruas de Nova York. Mas é considerado um escritor revolucionário e esse deslize virou apenas uma nota de rodapé em seu curriculo”, atesta Calcagno. O recurso de criar em cima do real já foi utilizado por Gay Talese para falar da complexidade do personagem a ser perfilado. No texto de 55 páginas publicado na revista Esquire, em 1966, “Frank Sinatra está resfriado”, Talese traça um perfil do cantor sem nunca ter trocado uma palavra com ele. Mas trocou muitas com uma centena de pessoas que conviviam com o astro.
São muitos os caminhos para se contar a história de um crime real. As motivações também. Nem todos seguem um roteiro óbvio que leva à descoberta dos assassinos. Quando Capote finalizou A sangue frio, já se sabia quem eram os culpados e isso não tirou o interesse pelo livro. Quando a romancista, professora e doutora em Literatura pela UFRJ Ieda Magri decide escrever o seu Um crime bárbaro (2022), quatro décadas já haviam se passado desde o acontecido, nos anos 1980, na cidade natal de Ieda, Águas Frias, interior de Santa Catarina. Uma menina de 13 anos foi enforcada, estuprada e teve as pontas dos dedos arrancadas pelos algozes. Até hoje o crime não foi esclarecido e ainda paira uma sombra de mistério e medo na cidade. “Minha intenção era fazer um romance-reportagem revelando os detalhes dessa história, dando voz à comunidade. É uma violência que continua viva”, lamenta a autora. Para ela, o medo reside na herança patriarcal da opressão às mulheres da cidade. “Feminicídios são erroneamente interpretados como crimes que caberiam às mulheres evitar.” Algo do tipo: não caminhe por ruas desertas, não use roupas curtas, não saia à noite.
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