Em um trecho da música “Se eu morresse amanhã de manhã”, de 1953, Antônio Maria supôs: “Se eu morresse amanhã/Minha falta ninguém sentiria/Do que eu fui, do que eu fiz/Ninguém se lembraria”. Onze anos depois, na madrugada do dia 15 de outubro de 1964, o compositor, cronista e jornalista pernambucano tombava em uma calçada da Rua Fernando Mendes, em Copacabana, com um segundo infarto que lhe retirou a vida aos 43 anos. Não é exato dizer que ali começava a lenda Antônio Maria, porque ela teve início há mais tempo, no Recife.
Na capital pernambucana, onde nasceu, em 17 de março de 1921, iniciou-se na profissão que ajudaria a projetá-lo: radialista. Começar a trabalhar cedo, no que surgisse, era uma forma de driblar as inesperadas limitações financeiras de sua família.
Com voz forte e segura e a influência da família, Tombinha conseguiu seu primeiro emprego, na Rádio Clube de Pernambuco. Ainda tentou seguir a carreira de agrônomo, trabalhando com irrigação e topografia. Mas optou pela mídia que se popularizava no mundo. Desempenhou as funções de disc-jockey, redator de programas e de anúncios. Dessa época, há fotos que o documentam como locutor e produtor, na recepção a artistas, como o cantor Nelson Gonçalves.
Na juventude, tinha contato com a música que explodia em diversos ritmos durante o Carnaval no Recife, principalmente o frevo. A vida boêmia, que marcaria sua trajetória profissional no Rio de Janeiro, foi iniciada ainda na terra natal. A boêmia era dividida com outra paixão: o futebol. O jovem costumava ir, com seus “primos feios”, aos jogos, nos quais torcia pelo Sport Club do Recife, time fundado em 1905. A vida era relativamente boa, tranquila e feliz. Mas a perda de parentes foi tornando-o também livre e destemido para lutar sozinho por sua sobrevivência.
Em 1940, Antônio Maria seguiu o caminho do conterrâneo e amigo de infância, Fernando Lobo (que, duas décadas depois, seria conhecido como “o pai de Edu Lobo”), que migrou para o Rio de Janeiro. Lá, morou com esse “cupincha” e com José Abelardo Barbosa, colega dos tempos do Colégio Marista, que ainda não era o popular Chacrinha. Maria conseguiu emprego como locutor esportivo da Rádio Ipanema. Pouco tempo depois, foi demitido, pois suas expressões radiofônicas não agradaram, assim como seu sotaque pernambucano.
Morando juntos, os rapazes contavam as moedas para se alimentarem e se envolviam em encontros turbulentos com mulheres. Por conta dessas confusões, tendo uma delas terminado na delegacia, com Antônio Maria preso por uma noite, ele e os amigos trocaram quatro vezes de endereço. Eram seguidamente expulsos por seus locadores. Enfrentando dificuldades para se sustentar no Sudeste, Maria acabou retornando ao Nordeste.
De volta ao Recife, trabalhou em rádio e jornal, entre 1941 a 1944. Em seguida, migrou a Fortaleza, para trabalhar na Rádio Clube do Ceará, permanecendo por quase um ano como locutor esportivo. Depois, foi a Salvador, onde atuou como diretor de produção das Emissoras Associadas e chegou a ser candidato a vereador. Em 1948, partiu em definitivo para a então Capital Federal, onde levaria o talento para redigir, narrar jogos e produzir… jingles – de certa forma, essa acabou sendo sua escola de composição, pois aprendeu a criar a melodia já com a letra. Como no jingle, o fundamental é a palavra, ele passou a compor cantarolando, sem instrumento, pois mal sabia tocar algum, embora tivesse feito aulas de piano na infância. Apenas tocava um violão claudicante.
Quando aportou no Rio, pela segunda e definitiva vez, havia dois anos que o presidente Eurico Gaspar Dutra tinha proibido a operação de cassinos, ao assinar um decreto em 30 de abril de 1946. Em compensação, por causa da presença dos gaúchos na capital fluminense, que chegaram para trabalhar como funcionários dos dois mandatos de Getúlio Vargas (1934-1945 e 1951-1954), começaram a eclodir churrascarias e boates no Rio de Janeiro. Esses ambientes eram propícios à música estrangeira que chegava ao país com força – mambo, bolero e chanson française, encabeçada por Edith Piaf.
Nesse contexto de temática romântica na música, surgiu o samba-canção (que alguns chamavam de “sambolero”, “samba-de-fossa” e “samba de meio de ano”, porque era cantado fora do Carnaval), subgênero que já despontava nos anos 1930 e teve seu apogeu nas décadas de 1940 e 1950. Nesse contexto, o Brasil recebia uma enxurrada de cantores latinos como o cubano Bienvenido Granda, o chileno Lucho Gatica e os mexicanos Pedro Vargas e Agustín Lara.
“O bolero era a praga, a saúva do intelecto, o inimigo público número 1 a ser atacado por quem tinha bom gosto. A soberania cultural brasileira estava em jogo, gritava Ary”, lembrou o jornalista e escritor Joaquim Ferreira dos Santos, autor da biografia Um homem chamado Maria (Objetiva, 2005). “O que Antônio Maria fazia era samba-canção. Não tinha nada de bolero. Ele não inventou nada, mas ouviu direitinho a lição dos mestres que vieram antes e traduziu para os anos 1950. Deu ao gênero suas cores definitivas: o preto e o cinza.”
Na década de 1950, Antônio Maria despontaria como um dos principais compositores da música brasileira e do samba-canção. Sua primeira composição gravada foi a batucada “Hoje não”, composta em parceria com José Gonçalves (Zé da Zilda) e interpretada, em 1949, pela dupla Zé e Zilda. Na sequência, foi registrada uma de suas mais preciosas joias, o “Frevo Nº 1 do Recife”, inicialmente chamado de “Recife”.
Sobre essa nova criação, repleta de lirismo, Antônio Maria escreveu, n’O Jornal, em 16 de setembro de 1951: “Sairá este mês o frevo ‘Recife’, música saudosista minha, que o bom Herivelto, generosamente, incluiu no repertório carnavalesco do Trio de Ouro. Não temos a menor esperança de que o frevo pegue, aqui no Rio. Mas, é uma gravação para todos de Pernambuco ter e tocar, na vitrola, quando apertar a saudade. A gravação é 'RCA Victor' e foi feita com a orquestra de Zacarias. Em Pernambuco, desde agora, já foram vendidos 1.500 discos, que serão entregues no começo de outubro. A outra face ajudará muito, pois é um samba de Herivelto falando do Decreto-Vargas sobre os homens de cor”.
Ainda sem alcançar muita repercussão com essas composições iniciais, Antônio Maria conseguiu convencer Nora Ney a gravar uma música sua e apresentou “Menino grande” – título que se tornou seu epíteto. A cantora cumpriu a promessa de que gravaria a canção em seu primeiro compacto na Continental, lançado em abril de 1952. Três meses antes, Heleninha Costa gravou, na Sinter, a marcha “A noite é grande”, parceria de Maria com o amigo Fernando Lobo. O nome fazia referência à coluna de Maria em O Jornal. Na sequência, Nora gravou “Ninguém me ama”. A música, interpretada pela artista no filme Carnaval da Atlântida (1952), se transformou em um fenômeno e no hino da fossa; ganhou o primeiro disco de ouro do Brasil e uma gravação de Nat King Cole.
“A primeira música que eu gravei de Antônio Maria foi ‘Menino grande’. Ele fez para ele mesmo e queria que alguém cantasse para ele essa música”, contou Nora Ney, no programa MPB Especial, em 5 de fevereiro de 1973. “Ele era muito gordo, muito simpático, uma figura engraçada. Uma vez, eu estava trabalhando no Copacabana Palace e ele foi lá me levar uma música, ‘Onde anda você?’, e foi de pijama mesmo. Os músicos tinham uma entrada separada. Eu era crooner. O que mais posso falar de Antônio Maria? Amou muito, viveu muito, sofreu muito, era um sátiro. Também maravilhoso e era um grande amigo, o ‘Bom Maria’, como o chamavam”.
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