Peter Sellers, David Niven, Peter Falk, Alec Guinness, Maggie Smith… Estes eram alguns dos célebres atores sentados à mesa oval da sala de jantar no set, para a filmagem de uma cena de Assassinato por morte (Murder by death, 1976). Os artistas aguardavam o atrasado intérprete de um personagem crucial para o roteiro – Lionel Twain, um ricaço que, na trama, havia convidado os maiores detetives do mundo para que, hospedados em sua tenebrosa mansão, descobrissem o autor de um assassinato, mas, sobretudo, quem seria a vítima.
Em seu camarim, alheio à espera dos atores, o tal “intérprete” de Lionel Twain ingeria algumas doses a mais de bebida. Após muita insistência da produção do filme, finalmente apareceu no set. Para a cena, surgiu de terno cinza, gravata borboleta, chapéu, óculos escuros, pronunciando esforçadamente as falas escritas pelo roteirista Neil Simon. A voz marcante, de um timbre agudo e quase miado, estava ainda mais arrastada, evidenciando o nível alcoólico e exigindo a remarcação da filmagem. Então, o que antes pareceu uma excelente ideia do diretor Robert Moore, convidar Truman Capote, 10 anos depois do lançamento de A sangue frio (1966), para essa interpretação especial em uma história de detetive e assassinato, gerou constrangimento no set e uma surpreendente indicação do “ator” ao Globo de Ouro de 1977, na categoria Revelação.
Na época da filmagem de Assassinato por morte, Capote estava afetado pela repercussão ambígua de quatro capítulos do que seria o seu mais novo livro, Súplicas atendidas, publicados na revista Esquire em 1975 e 1976. O problema não era o grande sucesso de vendas das edições do periódico. Mas, para redigir essa nova história, o escritor mais badalado da cidade, com sua maior arma, a escrita, havia assassinado a reputação de parte da alta sociedade novaiorquina, cujas entranhas ele conhecia e frequentava havia algumas décadas.
A publicação desses capítulos foi uma forma de Truman abrandar a cobrança para a entrega de um prometido novo livro, pelo qual recebeu 1 milhão de dólares adiantados. Aparentemente, o escritor estava diminuindo as cifras recebidas com as sacolas que chegavam em sua casa tilintando, revelando a munição de garrafas que enchiam os armários de sua cozinha. Novas e variadas bebidas não paravam de chegar para fazer companhia a latas de sopa industrializada e de caviar – os poucos alimentos que se preocupava em manter na despensa.
O autor costumava usar as horas das refeições não somente para degustar os pratos refinados dos melhores restaurantes da cidade, como Lafayette, Orsini’s, Oak Room e Colony, mas como uma oportunidade de estar em campo, fazendo o que mais sabia: observar. Desde criança, já praticava esse voyeurismo para escrever pequenos “perfis” de vizinhos e conhecidos. Adulto, estava ciente de que muitos ambientes poderiam fornecer matéria-prima para seus textos. Nos brunches, almoços, jantares, festas, festinhas e demais eventos, ele atraía como um ímã pessoas dispostas a falar, mas, principalmente, a ouvir, por tempo indeterminado, seus causos, fofocas e tiradas bem-humoradas.
Era essa característica, além de sua fama, inteligência e status, que motivava convites para que ele estivesse presente em petits comités de grã-finos. Nessas ocasiões, conheceu as mulheres que apelidou de Swans, “as” Cisnes – para ele, esses animais são belos na superfície, mas esforçados no nado que os mantêm sobre a água. Os maridos delas o aprovaram. Adoravam a presença de Truman nessas festinhas particulares, pois ele sabia animar um recinto. Esses convites eram praticamente um jogo de troca de poderes. De um lado, muito dinheiro e finesse; do outro, perspicácia, bom-humor, curiosidades, cultura.
Com isso, o improvável ocorreu. Ao invés de Truman ficar íntimo de seus iguais, de nomes da literatura e do jornalismo, passou a estar cada vez mais próximo dessas madames, que se tornaram suas amigas. A principal delas, Babe Paley, formou, com ele, uma dupla quase inseparável. A amizade era no nível telepático, de, às vezes, nem precisarem se falar para saber o que outro pensava daquilo que ambos tinham acabado de ver ao mesmo tempo.
Sofisticada, delicada, simpática, atenciosa, elegante, inteligente, rica e bonita, Babe era idolatrada por Capote e ele deixava isso muito claro para todos. Havia algo a mais para que o match dessa amizade fosse completo. Porém, essa relação de profunda confiança foi quebrada quando o artista publicou os capítulos de Súplicas atendidas na Esquire, a partir de junho de 1975. Neles, contou vários segredos, inclusive traições, especialmente do marido de Babe. Embora todos os nomes tivessem sido alterados, o ciclo restrito da high society sabia identificar quem eram os personagens envolvidos nos relatos; era só puxar um fio ou outro de informação – e principalmente saber com quem o escritor circulava. A New York, em fevereiro de 1976, farpeou: “Capote morde as mãos que o alimentaram”.
A intenção de Truman era realizar algo tão grandioso quanto Em busca do tempo perdido, publicado por Marcel Proust entre 1913 e 1927. Na época, ele enxergava a publicação de um novo livro como uma oportunidade de manter seu nome em evidência no circuito literário, pois havia se tornado, quase integralmente, mais uma celebridade em meio a tantas nos Estados Unidos. Era, frequentemente, chamado para animar talk shows com suas tiradas sarcásticas. O apresentador Dick Cavett se transformou em um de seus interlocutores mais assíduos. No entanto, o que saiu na Esquire, ao invés de salvar sua pele de escritor, acabou aparentando, para muitos, uma saraivada de fofocas de luxo do que com um livro – principalmente um bom livro e de um autor renomado.
A publicação na Esquire revoltou maridos, esposas, amantes e inimigos. Uma das socialites, por quem ele não nutria afeição, se tornou uma vítima fatal. Ann Woodward recebeu a insinuação de que havia assassinado seu marido deliberadamente, refutando a ideia vigente de acidente doméstico com uma arma de fogo. O escritor não apresentou provas – apenas rumores. Ann, modelo e atriz da rádio norte-americana, acabou tendo uma overdose, em 10 de outubro de 1975, por ingestão de dezenas de remédios.
Essa consequência trágica da escrita de Truman indignou suas antigas amigas, que passaram a não mais convidá-lo para os jantares em suas residências e nos habituais almoços no La Côte Basque, restaurante que intitulou o segundo capítulo impresso na Esquire, em novembro de 1975. Inaugurado no final da década de 1950, o estabelecimento funcionou por 45 anos, até fechar em 7 de março de 2004. Após o seu fechamento, o New York Times o denominou de “antigo templo da alta sociedade da culinária francesa na 60 West 55th Street”.
O golpe mais fatal foi o rompimento com Babe – isso fica evidente no documentário Súplicas atendidas: Os arquivos de Capote (2019), com vários depoimentos de amigos e pessoas que o conheceram durante toda a sua trajetória, e na série Feud: Capote vs. The Swans (2024), lançamento que marca o centenário do escritor neste ano. Nessa produção de Ryan Murphy, que já havia levado para a FX o conflito entre Bette Davis e Joan Crawford, na temporada de estreia de Feud, agora foca especificamente na ruptura da relação entre o autor e suas ex-amigas. A série dirigida com requinte pelo cineasta Gus Van Sant (Palma de Ouro, em 2003, por Elephant) abraça o relato de que Capote teria morrido repetindo o nome de Babe.
Mais do que amiga, Babe talvez cumprisse, na vida de Truman, o papel de uma figura feminina fraterna, tal qual uma irmã mais velha – tinha nove anos a mais do que ele, cuja infância era digna de um drama cinematográfico. Nascido em 30 de setembro de 1924, em Nova Orleans, o garoto, aos 6 anos, foi enviado para a casa da avó materna, no Alabama, depois que seus pais se divorciaram. Aprendeu a ler e a escrever sozinho, antes mesmo de ingressar na escola. Aos 9 anos, já tinha escrito um livro – aos 16 anos, havia lido toda a obra de Charles Dickens. Até os 10 anos, ficou sob os cuidados da tia Sook Faulk, que inspirou dois contos assinados pelo sobrinho, A Christmas memory e The thanksgiving visitor, ambos filmados para a televisão.
Essa tia foi responsável por algumas das boas lembranças da infância de Truman. Uma de suas preferidas era o preparo de biscoitinhos de gengibre em formato de boneco, daqueles que parecem enfeites de árvore de Natal norte-americana. O autor nunca deixou de consumir essa guloseima durante a vida – provavelmente como forma de manter uma ligação gastro-afetiva com a parte boa de seu passado. A mãe, Lillie Mae Faulk, reapareceu, no início de sua adolescência, e o levou para morar com seu novo marido, Joseph “Joe” Garcia Capote.
Abastado imigrante cubano do ramo têxtil, Joe promoveu duas grandes mudanças na vida do menino: acabou levando-o, em 1933, para residir com o casal em Manhattan; e, do padrasto, o jovem Truman Streckfus Persons, filho biológico de Archulus Persons, agora adotado, herdou o sobrenome. Na cidade mais efervescente dos Estados Unidos, o jovem pôde desfrutar da diversidade cultural do lugar, tendo a possibilidade de, por exemplo, ver, no The Famous Door, na Rua 52, um show de sua cantora preferida, Billie Holiday.
O sonho de uma família estável acabou em 1952, quando Joe Capote foi demitido e preso, após ser descoberto desviando dinheiro da empresa em que trabalhava. Com a mudança abrupta da situação financeira, Lillie Mae, que já era alcoólatra, mergulhou no vício e cometeu suicídio em 1954, aos 49 anos. Um dos desejos dela era ser aceita na alta sociedade - algo que o filho conquistou. Talvez uma metáfora para a sua nova realidade fosse a imagem de uma mulher elegante e bem-vestida, mas sem dinheiro, admirando a vitrine de uma joalheria, ao mesmo tempo em que come uma baguete. A descrição, obviamente, é do início de Breakfast at Tiffany’s (1961), filme parcialmente baseado no livro lançado por Capote em 1958 e cuja protagonista teria sido inspirada em sua mãe - segundo alguns estudiosos.
Enquanto frequentava a Franklin School, uma escola particular de elite no Upper West Side de Nova York, Capote foi contratado pela New Yorker como copy boy – contínuo, que tinha como uma de suas funções levar para os editores as cópias dos textos dos repórteres, sendo o cargo uma forma de jovens aspirantes a jornalistas ingressarem em veículos de imprensa. Na conceituada revista, fundada em 1925, ele passou três anos, até ter, em 1944, sua cabeça encomendada ao editor Harold Ross pelo poeta Robert Frost, “um velho bastardo”, segundo Truman. “O conheci quando tinha 18 anos e, aparentemente, ele não me considerou um adorador suficientemente humilde no altar de seu ego.” E completou, no texto Autorretrato, escrito em 1972, e publicado no livro Ensaios: “Talvez tenha me feito um favor; porque, então, eu me sentei e escrevi meu primeiro livro, Outras vozes, outros lugares”.
Assim como na vida Truman Capote não escondia sua homossexualidade, o livro de estreia, lançado em 1948, semiautobiográfico e abertamente gay, causou furor também por mostrar, na contracapa, uma imagem provocativa do jovem autor de 24 anos, algo que não se via no mercado literário. Na fotografia feita por Harold Halma, em 1947, ele está deitado em um sofá vitoriano, com olhar sexy para a câmera. “Fotografias sempre o favoreceram e, no entanto, se aquela fez dele tanto um alvo quanto uma figura cômica, ao menos alcançou seu primeiro intuito: deu-lhe não apenas a fama literária, mas também o status público que sempre buscou”, escreveu Gerald Clarke, no livro Capote: Uma biografia, lançado quatro anos após a morte do escritor – em 25 de agosto de 1984.
O alerta de que Truman não estava cumprindo com seus compromissos não soou com a demora de Súplicas atendidas, mas alguns anos antes da publicação dos quatro capítulos desse suposto livro na Esquire. No início dos anos 1970, Jann Wenner, editor da Rolling Stone, estava investindo no status literário de sua revista, criada em 1967. Então, resolveu convidar um dos maiores escritores do país para acompanhar a nova turnê dos Rolling Stones, baseada no álbum duplo Exile on Main Street (1972). A missão seria fazer uma cobertura com total liberdade para escrever sobre o aspecto que quisesse e como quisesse. Por isso, Truman Capote chegou a ser estranhamente visto em vários palcos, quase como um integrante da banda britânica ou de sua equipe técnica. Circulava pelos camarins, hotéis, viagens de avião. Quando terminou a missão, não voltou viciado em cocaína, como ocorreu à fotógrafa Annie Leibovitz, dois anos depois, mas descumpriu o acordo.
Ao cobrar o texto, Jann Wenner ouvia sempre uma desculpa diferente, até que ficou evidente que nunca veria uma frase sequer dessa sonhada reportagem. Então, o editor da Rolling Stone dobrou a aposta e teve mais uma ideia mirabolante. Resolveu chamar outro artista cheio de idiossincrasias para tentar extrair de Truman Capote as informações: Andy Warhol. O guru da pop art aceitou o desafio. A conversa, então, foi gravada enquanto caminhavam pelos arredores do Central Park. Sem experiência em fazer entrevistas, apenas em filmar seus pupilos, como a banda Velvet Underground, Warhol tentava extrair de si mesmo perguntas para o entrevistado.
Andy Warhol (hesitante) - Jann quer saber qual seu problema. Sobre escrever o artigo.
Truman Capote (traduzindo) - Por que eu não escrevi o artigo?
Andy Warhol - Sim.
Truman Capote - O motivo foi duplo. Um: à medida que a coisa progredia, eu via mais e mais besteiras escritas sobre a turnê inteira, e, ordinariamente, esse tipo de coisa não me incomoda, digo, por exemplo, posso cobrir um julgamento que está sendo coberto por dezesseis ou dezessete jornais ao mesmo tempo, e isso não me irrita nem um pouco, porque sei que tem alguma coisa a ver com meu próprio conhecimento. Mas meu problema com isso era que especialmente no jornalismo literário… au reportage… precisa haver um elemento de mistério para mim sobre isso. E o problema para mim a respeito daquele artigo em particular era que não havia mistério. (...) porque tudo (na turnê) era tão perfeitamente medido… encenado. Já que não havia nada “a se descobrir”, eu não me importei em escrever a respeito.
Sem ser jornalista, Andy, claro, não tinha condições de fazer uma edição ou uma abertura para a sua entrevista. A Rolling Stone, então, redigiu uma microabertura e estampou, na edição de 12 de abril de 1973, uma foto de Truman Capote na capa, anunciando a entrevista como um “áudiodocumento”. Na época, essa edição pode ter sido encarada pelo público como uma esquisitice. Mas o tempo tratou de transformá-la em uma pequena e exótica joia da história do jornalismo cultural, ao documentar o encontro entre dois cânones excêntricos que contribuíram para transformar suas respectivas formas de expressão. Warhol, nas artes visuais, na cultura pop; Capote, na literatura e no jornalismo.
Truman Capote, na realidade, havia empregado um dos meios do jornalismo, a apuração, para criar literatura. A ideia surgiu, de fato, no dia 15 de novembro de 1959, quando leu, no New York Times, uma notícia sobre o assassinato de uma família no Kansas. Ligou para William Shawn, editor da New Yorker e sugeriu uma cobertura mais aprofundada. Era uma forma de compensar uma reportagem não entregue sobre a Guerra Fria, a partir de uma viagem já feita à União Soviética. Desde 1949, um ano após o lançamento de Outras vozes e das publicações do escritor em diversas revistas, havia uma recomendação na New Yorker de que deveria ser levado em consideração qualquer texto de Capote que não fosse “muito psicótico”.
Com a nova sugestão de pauta aprovada, Capote convidou sua amiga de infância, Nelle Harper Lee, para acompanhá-lo nessa missão literária-jornalística, cuja viagem de carro levaria 20 horas de Nova York até Kansas. Foram de trem. Como um capricho do destino, os dois jovens escritores haviam sido vizinhos no Alabama e essa antiga amizade dos sulistas foi retratada no filme O Sol é para todos (1962), baseado no livro To kill a mockingbird, lançado por Harper Lee em 1960 e vencedor do Pulitzer no ano seguinte – há rumores, do próprio Capote, que ele contribuiu com o livro. Na história, Truman é Dill, o menino baixinho, magro e irritante.
A chacina de quatro membros da família Clutter aconteceu no Kansas, em 14 de novembro de 1959, 20 anos após o filme O Mágico de Oz retratar o estado do Meio-Oeste como uma terra de caipiras tão entediante, que levou Dorothy a desejar sair de lá. Para Capote, em A sangue frio, “a aparência” do lugar “está mais para a do Velho Oeste”. Embora não faça parte do “cinturão da ferrugem” (antes, na época da prosperidade, conhecido como “cinturão da manufatura”), região famosa pela eleição de Trump em 2016, o Kansas fica próximo a essa área (formada pelos estados de Michigan, Minnesota, Ohio, Iowa, Pensilvânia e Wisconsin) e vota majoritariamente, desde 1964, no partido republicano.
Essa predileção, agora já tradicional, pelo partido vermelho terá sido alguma intensificação do conservadorismo, devido ao crime contra a família Clutter? Ao mesmo tempo em que a vilazinha de Holcomb, com 270 habitantes, onde o crime ocorreu, lembrava o Alabama da infância de Capote, ir a um lugar como aquele, depois de viver por anos em Manhattan, era, para o escritor, o mesmo choque de chegar a Pequim. Os cidadãos o olhavam com espanto. Harper Lee, uma jovem à moda antiga, que mais parecia uma senhora, acabou sendo uma figura importante nessa jornada, propiciando a Truman, muitas vezes, conseguir uma conexão com moradores da cidade.
Ao contrário do que o ofício do jornalismo manda, Capote nunca gravou ou anotou nenhuma das dezenas de conversas que fizera. Harper Lee ficava atrás ou ao lado dele anotando, como uma estenógrafa, suas entrevistas. “Quem não entende o processo literário fica incomodado com blocos de anotações”, disse ele à revista Life, em 1966. “E os gravadores são piores – eles arruínam completamente a qualidade do que está sendo sentido ou falado. Se você anota ou grava o que as pessoas dizem, elas ficam inibidas e constrangidas. Isso as faz dizer o que acham que você espera que digam.”
“A questão da veracidade factual é uma das mais críticas no jornalismo literário”, apontou o jornalista Matinas Suzuki Jr, no posfácio da edição brasileira de A sangue frio, de 1993. “No caso de A sangue frio, porém, há uma nuance especial. Diferentemente de outros autores considerados representativos do jornalismo literário — Tom Wolfe, Gay Talese, John Hersey, Joseph Mitchell, Lillian Ross —, Truman Capote nunca fez do jornalismo a sua principal atividade profissional. Sempre foi basicamente um escritor que vislumbrou nas técnicas jornalísticas a possibilidade de trabalhar com uma dimensão diferente da ficção convencional. Tom Wolfe lembra que Capote nunca chamou seu relato de jornalismo; ‘longe disso: ele disse ter inventado um novo gênero’. Mesmo assim, Wolfe incluiu trechos de A sangue frio em sua antologia do new journalism (foi o único texto publicado na The New Yorker, o veículo por excelência do jornalismo literário, a ser selecionado para esse livro).”
“Minha teoria”, disse Capote, “é que você pode pegar qualquer assunto e tornar um romance de não ficção. Mas não quero dizer que seja um romance histórico, documental – estes são gêneros populares e interessantes, mas impuros, que não têm a persuasão do fato nem a atitude poética da ficção. Contei essas ideias a muitos amigos e eles me acusaram de falta de imaginação. Ah! Digo-lhes que são sem imaginação, e não eu. O que eu fiz é muito mais difícil do que um romance convencional. Você tem que se afastar de sua visão particular do mundo. Muitos escritores ficam fascinados com seus próprios umbigos. Eu mesmo tive esse problema – que foi um dos motivos pelos quais quis fazer um livro sobre um lugar absolutamente novo para mim – onde o terreno, os sotaques e as pessoas pareciam recém-criados”.
Se Capote imaginava encarnar o papel de um detetive no Kansas, seu plano foi arruinado, pois 11 dias após o crime, a polícia local descobriu os assassinos, presos, após muitas buscas, no dia 6 de janeiro de 1960. A sua intenção, então, seria desvendar a motivação dos criminosos, traçar perfis dos personagens envolvidos para montar e narrar a história. Uma das questões polêmicas que envolvem o resultado de seu trabalho é a eterna dúvida sobre a autenticidade das informações publicadas em A sangue frio. O professor e crítico literário Philip K. Tompkins pesquisou discrepâncias entre passagens do livro e o que afirmou ter apurado como fatos. Já a revista enviou um checador para o Kansas e ele garantiu que nunca vira um autor tão preciso nas apurações. Mas Capote complicava a discussão quando repetia a frase: “Não deixe a verdade arruinar uma boa história”.
A reportagem de 135 mil palavras foi publicada inicialmente em quatro partes, em edições consecutivas da New Yorker, a partir de 17 de setembro de 1965. A série de textos quebrou todos os recordes de vendas anteriores da revista. Capote lucrou 2 milhões de dólares com a venda do livro e dos direitos autorais para a realização do filme homônimo. Quando o livro foi lançado, consagrou-se como autor de uma obra-prima e a revista reforçava seu status, abalado por um texto publicado naquele mesmo ano, em 11 de abril, no New York Herald Tribune. Na reportagem Tiny Mummies: The True Story of 43rd Street’s Land of the Walking Dead, Tom Wolfe ridicularizava a New Yorker, em seus 40 anos de existência, como uma revista ultrapassada. O editor William Shawn ficou furioso, mas não houve resposta melhor que A sangue frio. Shawn, depois, afirmou que se arrependeu de ter publicado o texto de Capote.
Para comemorar o lançamento do livro em 1966, o autor idealizou e promoveu o Black and White Ball, no Plaza Hotel, em Nova York. Na celebração, por ordem do anfitrião, a entrada era permitida apenas aos que estivessem vestidos de preto e branco e mascarados. Considerada a maior festa do século XX, realizada no dia 28 de novembro de 1966, foi tão badalada, que o New York Times publicou a lista de convidados – para que ninguém mentisse, afirmando que foi sem ter sido. Dentre os nomes ilustres, estavam Frank Sinatra e Mia Farrow, que haviam se casado em julho daquele ano. O evento foi sua consagração. No topo da maior cidade do mundo, Truman Capote sentia-se o rei de sua época, tanto em Nova York como em Los Angeles.
Ao vender os direitos de A sangue frio, visitou os bastidores da produção dirigida por Richard Brooks – assim como fizera com Bonequinha de luxo (Blake Edwards, 1961), cuja versão cinematográfica recebeu críticas do autor, considerando que a contundente história original resvalou para uma comédia romântica. E se ele não enxergava em Audrey Hepburn a prostituta de sua narrativa, em Robert Blake, que interpretou o assassino Perry Smith, ele encontrou quase um sósia do criminoso pelo qual supostamente teria se apaixonado – na época, Truman já vivia o relacionamento com o escritor Jack Dunphy. Ver o ator foi como se deparar com um fantasma, relatou.
Durante a apuração dos fatos no Kansas, ao contratar um advogado para os réus, Truman Capote teria cometido, do ponto de vista jornalístico, um ato antiético, pois interferiu diretamente nos fatos. Isso fez estender o tempo de vida dos condenados à morte, facilitando o levantamento das informações, visto que os criminosos demoraram a revelar a motivação da chacina. Truman alegou que viu em Perry uma semelhança com suas origens. Ambos vieram de famílias desestabilizadas e desintegradas. E foram negligenciados pelos pais. Além disso, eram renegados pela sociedade: Perry, descendente de mexicanos; Capote, gay. Embora houvesse o rumor de que o assassino também fosse homossexual.
Perry Smith escrevia cartas para Truman chamando-o de friend e de “amigo”. A relação somente acabou quando foi consumada a pena de morte da dupla de criminosos - presenciada por Truman Capote. Entre tremedeiras, enjoos e vômitos, ele apenas conseguiu presenciar o enforcamento de Richard Hickock. Abandonou a execução às lágrimas: “Levei cinco anos para escrever A sangue frio e um ano para recuperar-me – se é que recuperação é a palavra; não há um dia em que algum aspecto daquela experiência não turve meus pensamentos”.
“Histórias de crimes que realmente aconteceram sempre foram muito populares”, afirmou Felipe Damorim, organizador do livro Os piores crimes da revista New Yorker (2021). “Praticamente desde que a imprensa foi criada, panfletos narrando de forma sensacionalista os casos mais famosos de assassinos, pistoleiros e bandidos eram uma leitura popular por toda a Europa e Estados Unidos. Capote, e a New Yorker, porém, elevaram o patamar. Aplicando recursos e técnicas tanto da literatura refinada quanto do jornalismo mais criterioso, o resultado foram artigos contundentes, tocantes e inquietantes, que aspiram ir além da mera descrição escabrosa de horrores. O objetivo é buscar em nossos pontos mais sombrios respostas que indiquem significados maiores sobre nossa sociedade”, completa Damorim, que selecionou oito grandes reportagens do periódico. Após a impactante repercussão de A sangue frio, a revista investiu na publicação de outras matérias policiais.
Capote demonstrou ao mercado editorial, midiático e cinematográfico, todos hoje lucrando bastante com histórias de true crime, que era possível extrair um bom produto a partir da violência - e não apenas dados superficiais e números. O talento para isso ele lapidou durante anos. Entre Outras vozes, outros lugares, de 1948, e Bonequinha de luxo, 1958, mergulhou profundamente na escrita. “Experimentei quase todos os gêneros literários, procurando dominar diversas técnicas e adquirir uma virtuosidade técnica tão forte e flexível quanto uma rede de pesca”, escreveu em 1972, no texto Autorretrato, em que entrevista a si mesmo. “Evidentemente fracassei em muitas áreas que invadi, mas é verdade que os fracassos ensinam mais do que os sucessos. Pelo menos, foi o meu caso, e mais tarde pude aplicar, com grande proveito, o que tinha aprendido. De qualquer modo, durante essa década de explorações, escrevi coletâneas de contos, ensaios e retratos, peças teatrais, roteiros para cinema e muitas reportagens factuais, em sua maioria, para a New Yorker.”
Uma das suas “experiências” foi com o jornalismo. “Já fazia vários anos que eu me sentia cada vez mais atraído pelo jornalismo como forma de arte em si. E tinha dois motivos. Primeiro, não me parecia que nada verdadeiramente inovador tivesse acontecido na literatura em prosa, ou na literatura em geral, desde os anos 1920; segundo, o aspecto artístico do jornalismo era um território quase inexplorado, pela simples razão de que muitos poucos artistas literários se dedicavam ao jornalismo narrativo; quando o faziam, era na forma de ensaios de viagem ou autobiografias. A partir de The muses are heard [cobertura do musical Porgy and Bess na URSS], comecei a pensar ‘em linhas’ muito diferentes: eu queria produzir um romance jornalístico, uma obra de grande porte que tivesse a credibilidade do fato, a instantaneidade do cinema, a profundidade e a liberdade da prosa, e a precisão da poesia”, escreveu no prefácio de Música para camaleões (1975).
Além de A sangue frio, o outro ambicioso livro de Truman Capote, Súplicas atendidas, tem seu paradeiro até hoje desconhecido, 40 anos após a morte do autor. Com o título inspirado na frase atribuída à Santa Tereza,“Mais lágrimas são derramadas por preces atendidas do que por preces não atendidas” (Oscar Wilde também disse “Quando os deuses querem nos punir, respondem às nossas preces”), pode estar trancafiado em algum cofre de banco, haja vista que Capote teria dito que o concluiu e entregou a chave a alguma pessoa. Algum dia, pode ser descoberto e disputado em leilão. Ou pode nunca ter sido totalmente escrito. Provavelmente, nunca saberemos.
CONTEÚDO NA ÍNTEGRA NA EDIÇÃO IMPRESSA
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