Bogotá, dias históricos de realismo latino-americano

Bogotá pede passagem e licença ao editor para que eu faça um parêntese nas 18 cidades em que vivi, porque minha estadia de poucos dias em 1985 foi muito especial

Lembrava-me de uma conversa em Beirute, alguns anos antes, com o embaixador Paulo da Costa Franco, velho amigo de Guimarães Rosa. Com graça, me narrava detalhes de um conto triste que o escritor lhe enviara e publicado postumamente em Estas estórias. Embora o nome da cidade colonial no alto dos Andes não aparecesse no conto “Páramo”, Rosa lhe confirmou ser Bogotá, onde havia servido como cônsul-adjunto de 1942 a 1944; cidade que contrastava com a “tierra templada, onde é limpa a luz”, que aqui considero Cartagena de Indias. Andando envolto em névoas sombrias, solitário e melancólico, respirando mal o ar rarefeito das alturas, o narrador chora e segue um enterro.

Reli o conto, com a expectativa de que minha experiência fosse radicalmente distinta. Afinal, já havia me programado para conhecer um lado reluzente de Bogotá, que começaria pelo famoso Museu do Ouro, com sofisticadas peças indígenas.

“Aconteceu que um homem ainda moço, ao cabo de uma viagem a ele imposta” “em cidade estrangeira”, dizia o conto lá pelo começo. Moço eu era. O Itamaraty me havia designado para integrar uma pequena delegação de intelectuais do RIAL (em espanhol Red de Investigaciones sobre las Relaciones Internacionales de América Latina). Felizmente ainda deu para ver o Museu do Ouro um dia antes que chegassem os tais dias especiais.

Em 6 de novembro, fomos recebidos no Palácio pelo presidente Belisario Betancur, que ocupou sua fala com o êxito iminente do diálogo iniciado com o M-19, o que finalmente traria a paz ao país.

Voltando a pé do Palácio Presidencial ao hotel, passei pela Praça de Bolívar e o Palácio da Justiça. Comecei a ouvir barulhos de tiros. Apressei o passo para o hotel, a uma quadra. Na entrada, um tanque de guerra. Associei as duas coisas e dei o melhor de mim para fingir achar a coisa mais normal do mundo ouvir que o tanque estava ali porque se realizava um bingo entre as mulheres de oficiais.

Ao entrar no quarto, tornaram-se mais intensos os barulhos vindos da direção da Praça de Bolívar. Liguei a televisão. Uma candidata a Miss Colômbia, de maiô, tomava banho de chuveiro, deliciando-se com a água que escorria pelo rosto, enquanto um entusiasmado apresentador descrevia suas qualidades. A transmissão se fazia desde Cartagena de Indias, a cidade ensolarada.

Os barulhos lá fora se intensificaram. Liguei para a recepção. Uma voz amável não conseguiu explicar o que acontecia, mas me recomendou não sair do hotel.

Minutos depois, vi a notícia. O M-19 havia tomado o Palácio da Justiça.

Fixado na televisão e sem poder sair, olhava as imagens que se alternavam, entre dramáticas e prosaicas, as de Bogotá e as de Cartagena de Indias, as dos tanques Cascavel e Urutu de fabricação brasileira mobilizados pelo exército colombiano, e as das candidatas a miss, nem todas tomando banho.

Assisti pela TV à operação para a retomada do Palácio no dia 7, quando se fez o tristíssimo balanço: morte de 11 magistrados da Corte Suprema, inclusive de seu presidente; de 35 guerrilheiros e, no total, de mais de 100 pessoas.

Também pude continuar a admirar as qualidades das candidatas, sem que o entusiasmo do apresentador diminuísse na encantadora Cartagena de Indias, onde a final do concurso teria lugar daí a quatro dias.

Tomei o voo de volta misturando o conto de Guimarães Rosa com o realismo do colombiano García Márquez que, dizia ele, não era mágico coisa nenhuma, era só latino-americano.