Recife, 16 de janeiro de 1977
Hermilo: estou vindo – como algumas milhares de vezes aconteceu contigo –do teatro. Não era mesmo um teatro, uma casa de espetáculos com camarins e palco. A bilheteria era uma mesinha, o coquetel uma batidinha de limão, mas tudo feito com muito carinho, podes crer. Até ias gostar do amendoim cozinhado (ainda estava quentinho), os carocinhos descascados, servido em bandejas, para se jogar de punhado na boca: cuidados de Margarida. Daí estás vendo, mas quero te contar cá de baixo, da “zona do agrião”. Grandão, que fez o cenário, não sei como se mantém em pé. Fez mesmo, serrando no serrote, e também o figurino, e trouxe num saco às costas uns restos de umas latas de tinta para pintar os cartazes que pedes para a boca de cena, e mais cartolinas com sarrafos apanhados no lixo de uma serraria na Ilha do Maruim. Falta fazer os cartazes de rua, para o que já providenciou um pedaço de tela de silk-screen e vai recortar os letreiros (os possíveis patrocinadores despediram-no, a ele e a Fábio, com um simples NÃO). Na falta de outro papel dei-lhes a ideia de imprimir sobre jornais velhos. Guilherme, o diretor da peça, plantou-se dia e noite na máquina de costura e, fazendo milagre dos pães, emendando fazendas, deu à luz cinquenta e tantas fantasias, além de perneiras, capacetes, máscaras, botinas, mas aí já estou de novo no terreno de Grandão e outros.
Atores e atrizes estão com as pontas de dedo roídas e calos nas mãos, além da garganta seca de gritar para casas vazias. Apanharam barro do talude da estrada para modelar formas de máscaras, etc. (algumas como a da cartola em cima de uma tábula, te lembraria coisas da escultura “dadá” ou quadro de René Magritte). Atores abandonaram a peça por um motivo inacreditável: não ter o dinheiro da passagem de ônibus. Cada um copiou do próprio punho a sua parte por não ter dinheiro para comprar o livro. No sábado em que deram duas apresentações, e, trabalharam das cinco às 11 no palco, cotizaram-se para a janta com o dinheiro que cada um trazia no bolso. pois a bilheteria deu déficit – tinham de pagar 600 ao teatro onde estavam, 180 de direitos autorais, músicos, bilheteiro, gorjeta aos funcionários, imposto sobre não sei o quê– e depois de receberem ameaças em lugar dos sonhados aplausos, deu para cada um tomar um, único, guaraná (sem bolo). Por isso estão agora no terracinho da Biblioteca Pública, no Parque Treze de Maio, e alegra-te, porque ao menos esta, Margarida Matheus de Lima, que nem sei se te conhecia pessoalmente, não te faltou. Inda promoveu uma expoziçãozinha dos desenhos que fiz para os slides no saguão da Biblioteca, pregando ela própria com durex as cartolinas nos painéis. Infelizmente ontem a máquina projetora pifou. Sabes de alguém que pudesse emprestar uma? Miguel está se virando com spot-latas, refletores improvisados com latas de tinta vazias. Vê aí quem ficou no lugar de Terpsícore. A representação está linda, muita coisa você não imaginaria que os meninos do Vivencial tivessem estofo de criar, com sol, cena, beleza plástica, espetáculo. Eu me surpreendi. Eu vi teatro nascendo.
E às vezes te via nas coxias ou junto de mim como no pastoril do Janga, procurando o último tostão para dá-lo a uma pastora que apesar de ter dançado e cantado a noite inteira ainda não tinha descolado.
Não tenho visto os teus amigos na plateia.