Eu havia conhecido na Califórnia um cientista tcheco, Milos Sovak, tradutor de Joyce e que fazia uns belíssimos livros de arte. Comentei com ele, num jantar em sua casa da Provence, com a presença do escritor holandês Cees Nooteboom, a ideia de folhear na Biblioteca Nacional de Portugal em Lisboa o Livro do desassossego. São fragmentos, a maior parte não datados. Há de tudo, desde uma anotação no verso de recibo até página datilografada. Há quem os tenha organizado cronologicamente, analisando lápis e canetas, e atribuído os mais antigos ao heterônomo Vicente Guedes. O mais frequente foi organizar por temas e atribuir o conjunto a Bernardo Soares.
Mas Pessoa dizia na correspondência que escrevia um romance. Será que lendo os originais eu encontraria o esboço de um enredo? Consegui encadear poucos textos segundo os humores da natureza. Milos veio a Lisboa e escolhemos mais alguns, cujos fac-símiles eram perfeitos para um livro de arte de poucos exemplares.
Em 1997, a obra de Pessoa estava no domínio público. Iniciada a produção do livro, a lei mudou de 50 para 70 anos após a morte do autor. A Assírio & Alvim alegou a existência de outras versões em português para negar a concessão dos direitos.
Surgiu a ideia de publicar vertido para o tcheco por Pavla Lidmilová (tradutora de Pessoa, Guimarães Rosa e Clarice), que mais tarde fez o prefácio. Mas a Assírio & Alvim avisou que tinha vendido os direitos de Pessoa para uma editora comercial na República Tcheca.
Uma alternativa seria em alemão. Curt Meyer Clason, o tradutor de Guimarães Rosa, fez a tradução, e o artista alemão Franz Neumann, as gravuras. Mas, em 1999, a Assírio & Alvim informou que uma editora suíça detinha os direitos sobre Pessoa para o alemão e pretendia fazer uma edição de Livro do desassossego. Havia alguns fragmentos já traduzidos. Isso criava um obstáculo à autorização, dada após a exigência de cortes, o que mudou um pouco o enredo.
Agora só faltava a capa de couro, que viria do Reino Unido. Não veio. O fornecedor alegou a falta do material por causa do problema da vaca louca que já vinha de antes e da febre aftosa que surgia. Tinham levado o governo a incinerar o gado e depois ovelhas e carneiros. A capa acabou sendo feita na Alemanha.
Quando Milos decidiu lançar o livro em Praga, em 2001, Kurt Meyer Clason adoeceu. Então foi marcada nova data. Aceitei o convite, mas eis que surge novo obstáculo.
Eu já morava em Brasília como diretor do Instituto Rio Branco e a data veio a coincidir com a que foi marcada para a principal cerimônia anual do Instituto. Deveria ocorrer num dia fixo, que é o do aniversário do Barão do Rio Branco, considerado o dia do diplomata, mas depende da agenda do Presidente da República, que faz um discurso sobre política externa. É a data também de formatura de uma nova turma do Instituto. Falam na ocasião o diretor do Instituto e o chanceler. Resultado: não pude ir.
Mas o livro existe, depositado em algumas bibliotecas, inclusive na ABL por meu intermédio, nas mãos dos escritores presentes ao lançamento como Cees Nooteboom, Franz Neumann e, com a morte de Milos, cópias restantes num depósito em Zurique. Os textos se referem a um dia determinado pela insônia, a chuva e a desolação.
Curt Meyer Clason quis que o título da tradução dos fragmentos, embora viessem todos do Livro do desassossego, não fosse o de uma edição já existente em alemão. Em vez da tradução literal, ou seja, Das Buch der Unruhe, veio a ser Die Unruhe des Dichters, ou seja, O desassossego do poeta, que, já cansado de tanta maldição, certamente aprovou a mudança.
João Almino é escritor e diplomata, membro da Academia Brasileira de Letras, autor de Entre facas, algodão, Homem de papel e outros 6 romances, escreve a série 18 cidades, sobre lugares onde viveu