Vitória de Santo Antão, da atualidade, é uma cidade em crescimento acelerado. Pouco lembra o pacato local onde Osman Lins nasceu, em 6 de julho de 1924, filho do alfaiate Teófanes da Costa Lins e de Maria de Paz. A mãe morreu quando Osman tinha apenas 16 dias.
Hoje, o antigo Bairro da Matriz, onde ele passou a infância e parte da adolescência, mantém poucos vestígios da sua passagem, e nenhuma referência a ele. Apesar de a prefeitura preparar um espaço cultural que, entre outras coisas, terá uma estátua para comemorar o centenário do autor. A data de inauguração ainda não foi definida, mas o espaço ficará na estação ferroviária, a mesma que Osman Lins usou para se deslocar de trem para o Recife, em 1941.
Com exceção da universidade que leva seu nome e de um mural com fotos e textos seus, no Instituto Histórico e Geográfico, há poucos registros visíveis sobre o escritor na sua cidade natal.
Ao visitarmos a cidade no final do mês de abril [2024], somente uma pessoa reconheceu e deu referências sobre Osman. A casa onde ele morou com seu pai e madrasta foi reconstruída, assim como a escola onde estudou. Do seu passado pessoal, só dois espaços sobreviveram: a casa da avó Joana Carolina, na Rua Alferes João de Matos; e, ao lado, o sobrado onde teria vivido sua tia Laura. E só.
OS COMEÇOS
Osman afirmava ter sido uma criança “diferente”: não jogava pião, não andava de bicicleta, não soltava pipas... Sua filha mais nova, Ângela Lins, o contradiz: afirma que jogar bola era uma de suas atividades constantes. Mais: os problemas que veio a ter no futuro, como o câncer de pele que o matou, tiveram origem nas suas caminhadas para caçar siris. “Era sol na carcunda”, comenta.
Se há dissenso quanto às brincadeiras, há consenso absoluto sobre suas dores. Ele ficou órfão da mãe ainda bebê. Tal ausência materna, comentou em diversas ocasiões, lhe conferia uma responsabilidade existencial. Osman pensava: se aquela menina tinha nascido com o único propósito de colocá-lo no mundo, ele precisava ser alguém. Outro fato desolador foi a ausência de fotos que permitissem conhecer as feições da sua mãe.
“Acho que ele tinha uma interrogação na cabeça a respeito do rosto da mãe dele”, comenta Litânia Lins, a filha mais velha, lembrando que Osman jamais teve acesso a uma fotografia dela. Ele passou a vida inteira tentando desvendar seu rosto. “Antes de morrer, ele ainda estava atrás dessa foto”, afirma Ângela.
A ausência perturba ainda hoje a família, especulando o que pode ter acontecido: “Contam que vovô ateou fogo em tudo que pertencia a Maria da Paz, devido à dor. Inclusive seus poemas… Sobre as fotos, a gente deve pensar que Vitória, há 100 anos, não era nada, e a mãe de Osman, dizem, não gostava de ser fotografada… Outros veem Litânia parecida com ela… Eu acho que papai puxou o nariz dela, pois o do meu avô era bem afilado, greco-romano”, divaga Ângela, que lamenta essa lacuna na vida do pai.
Se a mãe era uma figura inalcançável, não faltaram outras mulheres para lhe dar afeto. A avó paterna, Joana Carolina, mãe Noca, (homenageada em O retábulo de Santa Joana Carolina) assumiu a criação do menino, a ponto de brigar para que ele ficasse na casa dela, e não, na do pai. A tia paterna Laura, mãe Laura, também foi fundamental. A jovem madrasta Eulália, segundo Ângela Lins, foi uma segunda mãe. “Ela tratava meu pai do mesmo jeito que os outros quatro filhos que teve – Humberto e Homero (já falecidos), Maria de Lourdes e Luciene. Foi Eulália lhe deu o primeiro presente, aos oito anos, um suspensório. Osman também gostava muito dela”, lembra.
Sobre o pai, Teófanes, o alfaiate, Osman nutria uma profunda admiração. Cita-o como um homem que, apesar de simples, gostava de ler e andava sempre impecável. “Meu interesse pelos alfaiates, admito, nasce da consciência de um certo paralelo entre o trabalho de escrever e o deles”, relata o escritor.
RECIFE
Osman chegou ao Recife em 1941. Episódio registrado no texto “A partida”, incluído no livro de contos Os gestos.
Eu queria deixar minha casa, minha avó e seus cuidados. Estava farto de chegar na hora certa, de ouvir reclamações, de ser vigiado, contemplado, querido.
No Recife, foi acolhido pelo tio Álvaro da Costa Lins, que lhe conseguiu um emprego como escriturário no Ginásio do Recife. Foi também ele que lhe apresentou aos escritores Mario Sette e Mauro Mota, abrindo-lhe espaço para os contatos no mundo literário.
A vontade de ser independente o fez sair da casa do tio e morar em pensões, onde conheceu Lauro Oliveira, com quem se relacionou por décadas. Nesse período, decidiu arranjar um emprego que lhe permitisse viver melhor. Concorreu e passou num concurso para o Banco do Brasil, que ele chamava de “estrovenga”.
Era 1943. Por um período de mais de 20 anos, o Banco foi seu principal meio de subsistência, e, ao mesmo tempo, de frustrações. “Ele mantinha uma equidistância da instituição... Jamais trabalhou além das seis horas habituais, recusou promoções e cargos comissionados… Quando surgiu a possibilidade de aposentar-se, mesmo com redução salarial, não vacilou um instante”, relata Lauro de Oliveira, no livro Osman Lins – Vocação ética, criação estética.
Ele também não perdeu a chance de mostrar seu desprezo à instituição. Quando já aposentado, e tendo sido convidado a participar de uma exposição de livros escritos por funcionários, respondeu isto ao Banco do Brasil: “Não tem esse estabelecimento de crédito direito de exibir, como um ex-servidor ou servidor, livros meus: estes a duras penas realizados, não os escrevi por ser funcionário dessa casa, mas apesar de ser…”
ESPARTANO
A rígida educação dada pela avó Joana Carolina tornou Osman um homem espartano, com uma disciplina destacada por todos. Casado desde 1947 com Maria do Carmo (Mariinha), pai de três meninas Litânia (1948), Letícia (1950) e Ângela (1953), quando morava na Rua Evaristo da Veiga, 184, em Casa Amarela, cumpria uma rígida rotina. Acordava; vestia-se formalmente; escrevia das 9h às 11h; trancado no escritório, almoçava; ia trabalhar no Banco do Brasil; voltava; jantava e fechava-se novamente no escritório, para ler e atualizar-se. Segundo Ângela, outro hábito o acompanhava. “Ele tinha mania de almoçar ouvindo as Quatro estações, de Vivaldi.”
A filha do meio, Letícia Lins, afirma: apesar da fama de reservado, o pai era extremamente bem-humorado. “Seguia ele a linha Rousseau, de igualdade social, vida ao ar livre e natureza. Não fumava, não bebia. Organizava jogos de vôlei, em casa, aos sábados, com a presença de Gilvan Lemos, Gastão de Holanda, Hermilo Borba Filho, Aloísio Magalhães, entre outros amigos. Da infância, o que eu aprendi com ele foi a ver as coisas com o lado positivo”, lembra Letícia.
Ela também conta dos passeios que o pai organizava nos finais de semana: idas ao cinema, ao teatro, à Sorveteria Guemba, na rua da Aurora, às ruas Nova e Imperatriz. Tudo com direito a dicas culturais e a livros de presente.
Letícia recorda, ainda, que as férias familiares eram passadas em Vitória de Santo Antão; os carnavais e os São João, também. “A gente ia pros blocos, pros corsos. Não perdia um evento”, diz Letícia, que é corrigida por Ângela: “A gente se divertia. Ele só ficava parado”.
Osman também era muito carinhoso, diz Ângela, que guarda algumas cartas da intensa correspondência que ele manteve com as filhas durante o período em que viveu em São Paulo. “Era extremamente afetuoso. Dormia alisando minha cabeça. “
AMIGOS E TEXTOS
Antes de se mudar para São Paulo, em 1961, Osman teve uma produção extensa na imprensa local. Em 12 de outubro de 1958, no Jornal do Commercio, escreve sobre Invenções da noite menor, de César Leal. “O título antipático, de um rebuscamento irritante e nada condizente com os poemas, a capa de um mau-gosto enervante e sombrio, tudo são disfarces: aí estão um livro e um autor que não devemos ignorar.”
Em 31 de outubro, volta à carga, desta vez com Memórias do boi Serapião, de Carlos Pena Filho: “Com um extraordinário senso do verso, um poder incomum de iluminar as palavras e sua visão do mundo que seus poucos anos não explicam, Carlos Pena começa a realizar uma dessas obras muito raras em que quase não existem experiências – e o Boi Serapião é uma prova disto.”
Uma série de três crônicas sobre Gilberto Freyre também foram registradas no ano de 1960. Numa delas, do dia 27 de março, no Jornal do Commercio, ele escreve: “Há homens que jamais convidam. Quando muito dividem seus entusiasmos com um ou dois amigos, porque os mais lhes parecem todos uns desencantos, sem força, nem energia, nem merecimento à altura de seus alvos. Gilberto Freyre tem se distinguido por essa qualidade generosa que, suponho, nenhum dos que o exaltam jamais assinalou: não vendo a terra vazia, mas cheia de indivíduos, que como ele, são capazes de entusiasmo e ação, Gilberto Freyre é um homem que convida”.
Entre os amigos mais próximos, estavam o dramaturgo Hermilo Borba Filho, com quem manteve uma correspondência até sua morte; e, os amigos de pensão, Ernani Bezerra e Lauro Oliveira.
Ele também tinha uma boa relação com Gilberto Freyre e com James Amado, irmão de Jorge Amado. Mantinha, igualmente, amizade sólida com o escritor Gilvan Lemos, a quem aconselhou diversas vezes a deixar o Recife e seguir para o Sudeste, a fim de que pudesse divulgar e expandir sua obra. Gilvan afirmou, anos depois, ter se arrependido de não ter lhe ouvido. Disse que já havia publicado 23 livros e continuava inédito. E que a decisão de ter ficado no Nordeste foi o principal motivo para sua falta de projeção.
Com Hermilo, com quem fez o Curso de Dramaturgia, tornou-se confidente, íntimo. As cartas deles não só falam de episódios pessoais, como registram críticas de Osman ao repertório do Teatro de Amadores de Pernambuco, que ele considerava europeizado. Mas, principalmente, serviram para que ambos submetessem suas obras ao crivo do outro.
A Cepe publicou, em 2019, as cartas de Osman Lins a Hermilo Borba Filho no livro Osman e Hermilo - correspondência (713 pp.), organizado pelo professor de Letras Anco Márcio Tenório Vieira.