O sociólogo Gilberto Freyre tinha uma relação carinhosa, próxima e de grande admiração pela mãe Francisca Amélia de Freitas Freyre. Conhecida como dona Sinhazinha, a mãe do pernambucano era uma mulher culta, de sólida educação religiosa e moral, tendo exercido no filho não apenas o papel materno, mas também o de educadora e guardiã.
Gilberto era estimulado sempre a dar voos mais altos. Ela era parceira e confidente do filho, que ao viajar ao exterior para cursar uma universidade nos Estados Unidos, registrou no seu diário (Tempo Morto e Outros Tempos).
“Doi-me a separação de minha mãe. Não me sai da memória o seu rosto triste dizendo-me adeus. Foi de manhã. O diabo do vapor só saiu do Recife à noite. Ficou o dia inteiro no Lamarão à vista da terra; e eu vendo as torres, os telhados, os coqueiros do Recife, A cidade, ao mesmo tempo distante e próxima de mim. E ali - naquela distância próxima: cruelmente próxima- estava minha Mãe. Separação estúpida. E afinal, para quê? “, registra um desconsolado Gilberto, que anos depois escreveria uma explicação para essa declaração quase desesperada.
“Se num dos registros do seu diário o autor se refere à evocação da figura materna, ao ter se separado dela, ainda quase menino, pode esse registro ser interpretado como fixação nessa imagem? É evidente que não. Nenhuma atitude mais normal.”, adverte o adulto Gilberto Freyre, a fim de que não fossem feitas interpretações errôneas sobre a intensa ligação materna.
O Gilberto adolescente, descobrindo o prazer dos amores e a beleza das mulheres, também faz engraçadíssimos comentários sobre a beleza materna, que ele descobrira não ser a mais intensa, perto das adolescentes e de outras senhoras formosas.
Em 1915, segundo anotações do mesmo diário, escreveu. “Minha mãe pode não ser hoje para mim o que foi quando eu era criança. Ainda a considero uma mulher bonita e de um porte aristocrático. Mulher que nunca vi de chinelos, nem descuidado no trajo. Mas meus olhos críticos de hoje, ao compará-la com outras mulheres, encontram defeitos no seu físico. No seu nariz, por exemplo, que é aquilino - e portanto nobre - mas não esteticamente helênico.”
Mas Gilberto não para por aí. Se descobre que a mãe é menos bonita do que outras garotas que sua libido jovem vislumbra na paisagem, certifica-se cada mais do seu caráter. “Comparada em qualidades com outras mulheres e outras senhoras - o que encontro nela é uma evidente modéstia contraditoriamente ligado ao seu aspecto nobre - sua superioridade é inegável. Sabe ser boa, fazer o bem, ajudar gente pobre, sem tomar ares de caridosa profissional. Não concebo mãe mais mãe do que ela. Completa de modo ideal com sua ternura…”
Outro episódio mais antigo lembrado e transcrito por Gilberto em suas memórias de infância, diz respeito à visita de um tio, que o chama de feio na frente de todos. Mas a mágoa do futuro sociólogo não se deveu propriamente ao comentário, mas ao fato da mãe não o ter defendido.
“Lembro-me bem do dia em que um tio me chamou de feio na frente de todos e minha mãe não disse nada. Aquilo me doeu mais do que o insulto em si.”, registrou Freyre.
Luta e amor
Joana Josefina Evaristo também foi uma batalhadora. Mulher negra e simples, lavadeira e empregada doméstica, criou os filhos sozinha numa favela de Belo Horizonte. Não sabia ler nem escrever, mas era uma das grandes contadoras de história que a filha Conceição já ouviu na vida e isso terminou influenciando o seu destino.
Se para fazer seus estudos teve que também trabalhar como empregada doméstica, Conceição Evaristo foi buscar na oralidade materna, na luta cotidiana e na afetividade da mãe as influências para se tornar professora universitária e escritora reconhecida por seus contos, poemas e romances, entre os quais Ponciá Venâncio, Canção para ninar menino grande, Poemas da recordação e outros movimentos. “Minha mãe não sabia escrever, mas escrevia na gente com o corpo, com os gestos, com a luta”, declarou Conceição Evaristo.
O francês Charles Baudelaire foi outro que teve uma relação intensa com a mãe , comefusiva correspondência por cartas – das quais apenas as que o poeta escreveu ficaram para a posteridade. Após a morte precoce de seu pai, ambígua e por vezes conflitante com sua mãe, expressas em uma Caroline se casou com um militar autoritário, o general Aupick.
Um dos problemas entre Caroline Archimbaut-Dufays com o filho, iniciou-se quando ele, que vivia desregradamente, torrou a herança imensa que o pai morto deixou-lhe na infância. E foi alvo de um processo judicial da mãe para que o dinheiro que restava fosse controlada por um notário.
Apesar do confronto familiar, as numerosas cartas trocadas entre os dois têm um tom carinhoso, como nessa datada de 1861. “No fim de março te escrevi. Não nos veremos jamais! Estava em uma dessas crises em que se encara a terrível verdade. Eu daria nem sei o quê para passar alguns dias com voce, você, o único ser a quem minha vida está atada.”
“O poeta tem sempre muitas coisas a dizer a madame Aupick e uma considerável dificuldade de dizê-las por escrito. Sabe que ao vivo muitos dos mal-entendidos seriam dissipados. Para o leitor contemporâneo, Baudelaire certamente escreve e diz muito de si mesmo e de seus afetos e rancores, mas na dinâmica insaciável dessa máquina materno-filial o que dizem um ao outro ou é excessivo, ou nunca é suficiente.”, escreve Bruna Berber, num artigo publicado no Instituto Moreira Salles.
No livro L´enfant idiot: honte et revolte chez Charles Baudelaire (A criança idiota: vergonha e revolta em Charles Baudelaire , de Claude Delarue, o autor examina as tensões internas na obra de Baudelaire, especialmente os sentimentos de vergonha, exclusão e revolta que permeia sua poesia.
Delarue propõe que Baudelaire, frequentemente visto como um poeta maldito e visionário, também pode ser compreendido como uma figura marcada por uma sensibilidade ferida, próxima a de uma criança “idiota”.
O eu profundo
A relação entre Fernando Pessoa e sua mãe, Dona Maria Magdalena Pinheiro Nogueira Pessoa, foi marcada por um profundo afeto, mas também por distância geográfica - ele morava na Europa, ela na África - que deixaram ecos na vida e obra do poeta. Seu primeiro poema, escrito aos 7 anos, foi para a mãe.
"À minha querida mamã
Ofereço com amor
Esta quadra singela
Do seu filho escritor."
Pessoa perdeu o pai muito cedo, em 1893, quando tinha apenas cinco anos. No ano seguinte, sua mãe casou-se novamente com o cônsul português em Durban, na África do Sul, para onde levou o filho. Essa mudança foi decisiva: afastado de Portugal em tenra idade, Fernando Pessoa cresceu entre a saudade da pátria e a convivência com a cultura inglesa, o que moldou sua personalidade dividida e bilíngue.
Apesar do carinho que demonstrava por ela, o poeta sentiu-se deslocado no novo ambiente e escreveu mais tarde sobre um sentimento de desenraizamento e perda da infância. Em suas cartas, é possível perceber que mantinha um amor respeitoso por Maria Magdalena, mas também uma distância psicológica crescente.
Em diversas cartas, Pessoa escreveu à mãe de forma delicada, embora sempre com um tom contido. Um exemplo é a carta enviada em 1905, ao decidir permanecer em Lisboa após voltar de Durban:"Minha querida Mãe, Não te aflijas por eu ficar cá. É o que está melhor assim. Deus sabe o que faz."
Esse tom calmo esconde, muitas vezes, uma melancolia profunda. Pessoa parecia preservar a mãe da intensidade dos seus sentimentos, como se não quisesse preocupá-la com sua instabilidade emocional.
Maria Magdalena morreu em 1925. Pessoa, então com 37 anos, ficou abalado. Nos meses seguintes, sua escrita mostra traços de introspecção mais sombria. Alguns estudiosos apontam que a perda definitiva da figura materna acentuou o isolamento do poeta, que já vivia solitariamente em Lisboa.
Embora Pessoa não tenha se dedicado a escrever poemas diretamente voltados à mãe, a figura materna aparece de forma indireta em seu universo lírico — muitas vezes associada à ideia de perda, ausência ou idealização do lar. A figura do “lar perdido” ressoa em passagens melancólicas de Mensagem ou nos poemas do heterônimo Álvaro de Campos, especialmente quando fala da infância como um tempo perdido.