Nascido em 1948, em Barcelona, Enrique Vila-Matas faz sua estreia literária bastante jovem, em 1973, com um romance breve intitulado Mulher no espelho contemplando a paisagem – escrito durante a temporada do autor no norte da África, quando cumpria o serviço militar obrigatório. A consolidação como grande promessa das letras espanholas, contudo, só chegou na década seguinte, com outro livro breve, mas certamente bem mais memorável: História abreviada da literatura portátil (1985), uma aventura intelectual (na qual os personagens são artistas, escritoras e vanguardistas como Walter Benjamin, César Vallejo e Georgia O’Keefe) que pode ser lida com proveito ainda hoje.
Ao ler a produção mais recente do autor, portanto, é preciso ter em mente que se trata de uma atividade criativa que se expande por mais de cinco décadas, o que tem efeitos positivos e negativos. Em seu novo romance, Montevidéu, recentemente lançado no Brasil pela Companhia das Letras, com tradução de Júlio Pimentel Pinto, Vila-Matas retoma uma série de temas fundamentais para sua obra como um todo, elementos que contribuíram decisivamente para a construção de sua poética: o deslocamento imaginativo e geográfico dos personagens; os jogos de espelho que confundem pertencimentos e identidades; o uso consistente e reiterado de outros textos literários, fazendo do romance uma textualidade ensaística experimental; a ironia do estilo, muitas vezes expressa através de personagens que não compreendem inteiramente suas ações e também o comportamento daqueles que os rodeiam.
Enquanto narra as variadas vicissitudes de sua vida cotidiana, o protagonista de Montevidéu comenta as dificuldades que enfrenta em seu ofício, que é, precisamente, o da escrita. Nesse processo, ele começa a prestar atenção em sinais (mensagens cifradas? enigmas cujas soluções se perderam? resíduos de um mundo para além da realidade?) em portas e quartos contíguos, especialmente em hotéis. Esse é o mote que permite que o romance se apresente também, em certos momentos, como um relato de viagens, já que o narrador – encontrando esses símbolos misteriosos – passa por cidades como Paris, Cascais, Montevidéu, Reykjavik, St. Gallen e Bogotá. Frequentemente distraído, ele é surpreendido por eventos que, simplesmente, “acontecem”, mudando sua rota (e, por consequência, seu relato), sem que haja – aparentemente – qualquer plano prévio orientando sua odisseia.
A narrativa de Montevidéu se movimenta a partir de encontros e acasos. Ao retornar a Barcelona, depois de uma das viagens, por exemplo, o narrador encontra um amigo no “Bar Bérgamo” (outra cidade que se esconde no nome do bar de outra cidade: jogo de espelhos), estabelecimento escolhido porque era frequentado pelo escritor mexicano Juan Rulfo sempre que ia à cidade. Em outra ocasião, ao chegar em Bogotá para participar de um júri, o narrador se reúne com outros dois participantes. Os três vão passear pelo centro da cidade, fazendo com que o encadeamento dos assuntos seja também o das ruas, das esquinas, da paisagem. De repente, surge uma “intranquilidade constante”, fruto do “horror visual” que encontram durante o passeio – o narrador fala em crianças assassinas, mendigos e loucos, todos com “profundo ar sonâmbulo”, que davam “muito medo”, apesar de inofensivos.
Quem conhece os livros anteriores de Vila-Matas já conhece o livro novo, uma vez que Montevidéu é montado como uma colcha de retalhos retirados do passado, em um movimento “autoparasitário”: o narrador é um sujeito doente de literatura, que só pensa nela, que frequentemente raciocina por meio de citações, como acontece também em O mal de Montano, romance de 2002. O protagonista de Montevidéu, ainda jovem, se muda para Paris e lá se descobre imbuído do desejo de se transformar em escritor (nos moldes de Ernest Hemingway e da “geração perdida”), como acontece também em Paris não tem fim (2003). Por fim, vale apontar ainda que o narrador de Montevidéu é conhecido por ter publicado um romance intitulado Virtuosos da suspensão, no qual fala de certa “síndrome Rimbaud”, que acomete escritores que decidiram abandonar a escrita – algo que Vila-Matas explora extensamente em seu romance Bartleby e companhia (2000), a partir da ideia de uma “síndrome de Bartleby” (homenagem ao personagem de uma novela de Herman Melville que, um dia, diante de uma tarefa, declara: “Prefiro não fazer”). Diante disso, cada leitor terá que montar sua estratégia. Aqueles que não conhecem nenhum outro livro de Vila-Matas, podem utilizar Montevidéu como uma porta de entrada, já que encontrarão, condensados, os elementos mais recorrentes de sua produção. Aqueles que, em maior ou menor grau, já conhecem os livros anteriores de Vila-Matas, poderão avaliar a estratégia do autor tendo em mente que se trata de uma escolha estética, de um gesto que faz parte de seu posicionamento como escritor diante da tradição e das novas tendências da literatura no presente. Em Montevidéu, Vila-Matas claramente seleciona os momentos de sua obra prévia que considera mais ricos e produtivos, colocando-os novamente em circulação. O próprio narrador do romance coloca em pauta essas questões: ele é o primeiro a duvidar da literatura e, dentro dessa dúvida, continua insistindo na escrita e na possibilidade da criação, apesar dos reveses, dos obstáculos e das incertezas.
A inventividade de Vila-Matas – não apenas em Montevidéu, mas na maioria de seus livros – está no modo como reorganiza, reutiliza e reapresenta textos do passado. Em certo sentido, ele pode ser visto como um leitor dedicado que, um dia, se transformou em escritor. Neste novo romance, o destaque está na figura do escritor argentino Julio Cortázar (1914-1984), autor das obras emblemáticas O jogo da amarelinha e Nicarágua tão violentamente doce. É de Cortázar que vem o título do romance, já que o narrador de Montevidéu vai à cidade para conhecer de perto o cenário de um dos contos do escritor admirado. Em um conto de 1956, intitulado “A porta condenada”, Cortázar fala de uma porta em um quarto de hotel na capital uruguaia, comentando, de forma enigmática, os eventos que parecem levar em direção a uma fronteira entre o “real” e o “fantástico”.
A força do romance de Vila-Matas está no exercício de fazer ecoar a força do conto de Cortázar, espalhando aquilo que era próprio da forma breve pelos dutos e mecanismos dispersivos da forma romanesca. Enfileirando cidades e paisagens, ao longo da trama de Montevidéu, Vila-Matas testa as possibilidades desse sucinto – mas poderoso – achado de Cortázar: muitas vezes o fantástico não reside na inesperada manifestação da estranheza na realidade, e, sim, no olhar criador do artista, que atua sobre a realidade com suas ferramentas, moldando o fantástico ali onde havia apenas a banalidade.
Kelvin Falcão Klein é crítico literário e professor de Literatura Comparada na UNIRIO, autor de Cartografias da disputa: entre literatura e filosofia (UFPR, 2023).