A faceta romancista de César Leal

“Um dia, sonhei que via a foto de um velho de barbas negras na capa de um livro. Ao olhar o livro, observei que o nome do autor era o meu.”

Assim conta como se descobriu poeta o poeta César Leal, a partir de um sonho. O episódio nos faz lembrar da experiência de Coleridge com seu Kubla Khan, o neto de Gengis Khan.

A descoberta de César Leal se deu nos anos 1950. Talvez ainda nem tivesse alcançado os 30 anos de idade.
Agora, avancemos uns 50 anos, para ler, outra vez, César, no prefácio de seu romance: Minha amante em Leipzig, publicado em 2002. Em 1999, em Frankfurt, ele entra em uma mansão-antiquário e se depara com um manuscrito.

“É um romance anônimo, ou algo parecido com romance”, disse a proprietária do estabelecimento, e suas palavras servem como resenha bem eficiente: “narrado em forma de memórias, ou diálogos, contos, delírios, como podia ser uma biografia (...), narrativa de aventuras, fantasias literárias misturadas à verdades históricas ou até mesmo um romance ensaístico: por que não? Os originais têm 300 folhas soltas”.

O texto, em língua tedesca, o que se pode chamar de alemão, foi escrito por um jovem poeta de 19 anos.
César termina por comprar o original.

“O que o senhor vai fazer com o romance?”
“Traduzi-lo para o português.”
“E nome do autor?”, ela perguntou, mas ela mesma respondeu sem hesitar: “Isto agora é seu. Por que não usa seu próprio nome?”
“Uma boa ideia, senhora”, disse o comprador.

Todas as vozes, a voz
A um romancista cabe esticar ao máximo as linhas da imaginação e da realidade. Misturar o quanto possa as tintas entre a razão e a sensação. Para isso, deve usar todas as ferramentas. Sem escrúpulos.

Nesse caso, os “desdobramentos” entre o eu e o não eu não são meras casualidades psicológicas. César Leal, que se encontrou com Tristan Tzara, o dadaísta, no Aeroporto do Recife, e recebeu algumas vezes Nicolás Maquiavel, em casa, enfim, um criador de imagens, é sempre bom pensar na psicologia como perspectiva para a recepção da literatura, do processo criador, sua capacidade de turvar as linhas, de abrir caminhos à interpretação psicológica do texto, e de suas relações com leitor.

Porque a mágica do romance nunca acontece no texto. Ela ocorre no ponto de convergência entre o texto e o leitor, ela nasce nesse tipo de nuvem, desse lugar indefinido.

Em Minha amante em Leipzig, o leitor se vê agarrado logo cedo a esse anzol. Precisará o tempo inteiro dessa métrica e troca de sinais para se confrontar com a leitura. Ler é escolher e discernir.

Não é, como se diz, um romance polifônico, mas ecofônico ou egofônico ou resultado da reverberação de uma única voz, a de César, o crítico literário, o poeta, o professor, nesses diálogos, ensaios, delírios dos personagens.

E do que trata o romance?

O jovem poeta chega a Leipzig para seu doutoramento em Direito e encontra a proteção da Senhora von Hardberg, esposa do seu professor. Ela tem 27 anos e já se considera “quase velha”, em um corpo visitado constantemente pelo pecado. A Senhora tentará infiltrar o estranho na sociedade de Leipzig. “Relaciona-te com os grandes, mas não imites seus vícios e fraquezas.”

O mote da ambição, especialmente de jovens que chegam a outras cidades em busca de prestígio, poder e conhecimento, é bem comum na literatura.

Quem leu O pai Goriot (1835), de Balzac, e acompanhou as aventuras de Eugène de Rastignac, também estudante de Direito, conduzido à sociedade de Paris com os esforços de uma viscondessa, uma prima distante, ou mesmo quem leu as artimanhas do alpinista social e canalha Georges Duroy, em Bel-Ami, de Maupassant (1855), e sua ascensão na sociedade parisiense, notará isso.

Porém, verá o quanto o jovem estudante anônimo de César Leal teve, aparentemente, mais sorte no jogo do amor. Quer dizer: o leitor avança 10 páginas do começo, para saber o quanto o jovem já está ferrado: “Logo alcancei os mamilos, que estavam eretos, suavemente eretos. Por baixo do vestido...”

Um romance antropofágico

Em qual romance você poderá ler uma frase assim, como algo banal, que acabou de acontecer na esquina: “Shakespeare tem sido muito atacado por Voltaire”?
De propósito, omiti o intertítulo da obra: “Ensaios sobre as artes, as armas e o amor”. E, no caso daquela senhora, bem cedo ela mostra suas artimanhas, no jogo da sedução.

De fato, o romance tem o aspecto de ensaio, onde são tratadas a poesia, a literatura, também a pintura e a escultura, mas tudo a serviço da narrativa ou, como diz a Senhora von Hardberg, se livrando do didatismo: “Isso é uma conversa”. E é em tom coloquial que o romance está armado, sobretudo no bom uso das técnicas do diálogo.

César Leal utiliza grandes blocos de nuvens para esconder do leitor intenções e desejos do triângulo de relações da sua história.

Nos pequenos ensaios, as figuras de Shakespeare e Dante se destacam. Ainda há uma pequena constelação de grandes poetas como Virgílio, Parmênides, Homero, mas também muitos autores do século XIX, das vanguardas europeias, em cenas opulentas onde se trata de Camões aos poetas espanhóis; dos ingleses Donne, Herbert ou Marvell, à filosofia francesa de Rousseau e Diderot, passando pelos alemães Herder, Klopstock e Winckelmann.

Os amantes se encontram entre pinturas de Rubens, Rembrandt, dos italianos Michelangelo, Da Vinci, Rafael, Veronese, enquanto discutem noções de Direito Natural e Arquitetura, em autores como Grotius ou Thomasius, ou leem nus trechos lascivos do Decameron, de Boccaccio, enquanto um pássaro suga néctar de flores somente pintadas.

Embora a leitura possa parecer pedagógica em alguns capítulos, o leitor notará sua função: sua precisão constrói a atmosfera imprescindível para entendermos as taras e obsessões daqueles personagens. E sua verossimilhança não pode ser interpretada somente no sentido literário, porque disso o texto foge muitas vezes. Deve-se acrescentar ao termo seus significados na filosofia e na psicologia ou até mesmo na estatística, nas noções de probabilidade e possibilidade (temas caros também à psiquiatria).

Na literatura, a verossimilhança interessa mais que a verdade. E ocorre exatamente o contrário em relação à filosofia.

Esse equilíbrio mediu ao máximo as habilidades do autor.

Minha amante em Leipzig
é, sobretudo, uma literatura compulsivamente nutrida da grande literatura, com acentos eróticos, sensuais, cujos traços de assimilação têm aspectos de antropofagia cultural, do modernismo. Com um detalhe: o enredo se dá em um tempo onde não havia ainda a ideia de modernidade. Não à toa, o narrador se apega à ideia de moderno, mas em “um sentido que exige cuidadosa interpretação”.

Se em alguns romances o motor principal é o dinheiro ou o poder, nesse os personagens são arrastados pelo sonho da beleza ou, pelo menos, à exacerbação das qualidades do sentir, a hiperestesia a partir de todos os excessos: filosóficos e literários.

São personagens excessivamente planopotentes. Explico: neles, a planitude serve para mostrar seu vigor mental. E mais ainda sua loucura. Seus conflitos internos são, antes, conflitos estéticos. Eles servem como parte da técnica narrativa para retratar seus estados mentais e sentimentos. Os espíritos foram substituídos por cérebros. A virtude pelo vício. As almas pelas inteligências. Artificiais. Não ocorre um pouco assim hoje, também?

Em algum momento, o jovem, obcecado por simetrias, revela o quanto gosta de experiências técnicas. E esse é o mesmo espírito do autor. No processo de escrita do romance, estão presentes várias personalidades: a dos personagens, nas camadas de cima e, por baixo, as personalidades do romancista. É por ela que aquelas outras funcionam e se alteram. O ficcionista é um conjunto humano de indivíduos.

Em busca do “triunfo da linguagem” (talvez a melhor definição de certo tipo de orgasmo, no romance), ele pratica, em Minha amante em Leipzig, vários estilos e gêneros: o conto, o relato histórico, os ensaios, a sátira, a poesia, o romance filosófico, aos moldes do bildungsroman ou romance de aprendizado. Quanto a isso, como se sabe, o gênero nasceu com Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister (1796), um romance de Goethe. Ou era assim, porque, cronologicamente, o romance de César Leal, com acontecimentos de 1769, viria primeiro.

O parágrafo anterior serve para levantar a lebre: quem será mesmo o jovem narrador misterioso e anônimo? Mais um deslocamento de consciência?

São muitas as ironias. Muitas as descobertas.

Faltava um interlocutor ao romancista César Leal
Parei a leitura do romance pela metade. Era preciso pensar antes de continuar. Por qual razão um poeta como César Leal escreveria um romance, tão fortemente armado sob o signo da imaginação, no grau do delírio?

A solidão, pensei.

César Leal buscava interlocução. Alguém com quem pudesse dividir sua poesia, seu conhecimento, sua tara, seu amor ao sublime, seu desejo de fabular, sua prosa. Ou do que antes era prosa e hoje é poesia. E vice-versa.
E o gênero romance, no qual tudo cabe, foi sua maior tentativa.

É preciso estar muito sozinho para escrever um romance. Para produzir multidões e povoar o mundo, o romancista precisa dessa solidão. A solidão de sempre buscar o novo. Cesar Leal encontrou para si o exílio e a conformação necessária.

Então, continuei a leitura, comovido por esse pensamento, a solidão sem fim, prece do romancista ao encontrar outro romancista, outro leitor.

Estava empolgado pela força narrativa das intrigas do narrador César Leal, daquela luta nas nuvens, dos choques entre a tradição e a modernidade na sua construção. Da ansiedade comum aos jovens como é esse narrador, mas também da voracidade de esfinge de sua amante. Deste tudo-ao-mesmo-tempo-agora.

De novo, a ideia do acúmulo, dos excessos, hoje tão vulgar.
Nada consegue fazer nos retirar do drama. Tudo é simetria e equilíbrio. Tudo muito atual.

Nem mesmo toda a riquíssima História Ocidental, também cenário diante dos nossos olhos nesse romance, é capaz de nos tirar a atenção desses pobres personagens, onde todos são infiéis. Até nos vícios. A expressão é de Shakespeare. Onde a morte vil colocou o seu tormento. A expressão é de Dante.

Nesse romance, o indivíduo César Leal preferiu se diluir, como o fez em sua poesia. Aqui, um grau a mais de despersonalização: escolheu se sujar nas tintas, com seus amantes, e assim poderem gozar da ideia e intenção, melancólicas, de participar da mesma constelação. Solitária. Anônima.

Sidney Rocha é escritor, autor de O inferno das repetições, Sofia - Uma ventania para dentro, Fernanflor e O destino das metáforas