Inquieto e disposto a trilhar muitos caminhos, aos 81 anos, o artista plástico João Câmara prova ser camaleônico. Com o seu novo livro Retábulos, Predela, o terceiro publicado desde 2022, ele prova ser também mestre na arte da literatura.
Esses contos enormes, quase novelas, surpreendem pela complexidade das histórias, que apresentam camadas diversas, charadas...
Retábulos, Predela é um exemplo claro dessa multiperformance. Nele, o paraibano radicado no Recife desde a adolescência se firma, definitivamente, como um dos grandes mestres dos contos da atualidade.
O título do livro, indecifrável para os não familiarizados com as artes plásticas, já revela um pouco da sua estrutura. O termo retábulo refere-se a painel ornamental atrás de um altar. Predela, por sua vez, é a parte inferior dele, frequentemente decorada com pinturas ou esculturas.
Neste livro, os três contos podem ser lidos individualmente, como pedaços soltos de um retábulo. Não estariam interligados. O que só em parte é verdade. As três narrativas, apesar das temáticas diametralmente opostas, trazem um sentimento que as perpassa: a do indivíduo lutando contra a desimportância e a submissão. Contra um destino historicamente óbvio. Pautado por sonhos ínfimos, até patéticos. Mas que é tudo o que lhes resta para manter a mínima dignidade. Juntas, as três histórias formam, portanto, um retábulo.
Entre os contos, o segundo deles, “Emanuel” é o mais ambicioso: resgata a saga de guerreiros em Angola no começo do século XX, uma narrativa feita em primeira pessoa, por meio de um diário de campanha escrito por um certo coronel Jerônimo.
O texto descreve uma trama de guerras e traições. Junto ao narrador, cresce a sombra de um fantasma vivo, Emanuel Zindongu, personagem quase épico, bem diferente do homem que despeja nas folhas do seu diário, a convicção de que aquela, como muitas outras, é uma guerra infame. E que ele mesmo, é um ser desprezível.
“Tem sido isso, a mulher e os filhos já se acostumaram, sequer criticam ou reclamam de minha obediência cordata, vou, faço o serviço, desocupo o palco para os políticos retocarem a peça com acordos e negócios. Mando pôr areia, varrer o sangue dos réus dos muros dos fuzilamentos, o próximo ato sempre se abrirá num salão de tábuas corridas e enceradas, em alguma corte de justiça, palácio ou tempo, enquanto eu e a tropa espiamos por detrás dos bastidores.”
Com ironia, Câmara descreve Emanuel como filho de Madalena, a lavadeira, e José, o taberneiro, quase como um messias. Esse messias sanguinário clama a justiça e impõe o terror.
A Angola retratada por Câmara, como em 1902, pode ser comparada à de 1992, das eleições até o fim da guerra civil em 2002, em seu longo e tenso processo de reconstrução.
O comum
Com enredos mais amenos, e bem menos ação, “Anselmo” e “Carol” são duas narrativas que, no olhar de um leitor ingênuo, poderiam ser descritas como simples. Um erro. Principalmente em “Anselmo”, que retrata a história de um trabalhador assalariado, sem importância, cuja vida se resumiu a cumprir e a se submeter ao que lhe foi oferecido. Resolve, ao se aposentar, sair um pouco do lugar-comum.
Nesse conto, a ironia e o mordaz senso crítico de Câmara aparecem quase com crueldade, nas entrelinhas e fora delas. Mostrando o quanto pode haver de profundo e melancólico nas vidas mais acanhadas. Ou principalmente nelas, que escondem dores insuspeitas, angústia, desesperança e, às vezes, a quixotesca ilusão de que tudo pode melhorar.
“Trabalhou para engenhos, usinas, cooperativas e sindicatos. Contador, amanuense, escriturário, sujeito anônimo, solteiro, pobre… Uma biografia de lástimas, incluiria que foi criado em orfanatos”, descreve João Câmara para traçar a figura de um cidadão de “segunda classe”.
Após anos de trabalhos, Anselmo, cujo nome ironicamente significa o protegido, defendido por Deus, se aposenta. E da cama de sua pensão resolve colocar em prática um sonho: alugar um apartamento e passar uma temporada desfrutando dos encantos à beira-mar. Um desejo atingido.
Mas como tudo o que Anselmo toca, seu retiro tem qualidade duvidosa:
“Anselmo confirmou que Poço Seco jamais seria praia da moda, habitada por qualquer tipo de festejo, alegria espontânea ou fabricada. Poço Seco era triste por natureza e vocação. Sofria a melancolia de uma pobreza autista.”
Aquilo era decepcionante? Anselmo certamente achava:
“Incomodava-se talvez com esse aspecto, mas suas demandas e motivos não se haviam construído com imagens de paraísos turísticos, ou de resorts primitivos, policrômicos. Pouco importava não estar num eldorado caribenho, ou num simulacro de Mururoa. Ele acreditava ter um desejo – talvez pudesse aí usar a palavra libido – sabia ter uma energia capaz de conformar indigências em contingências aceitáveis. Afinal de contas, e por isso mesmo, era, essencialmente, um contador, um peão treinado dessa profissão em que a criatividade para sobreviver deve ser dissimulada, deve fingir-se ausente.”
No meio do enredo, com um toque de realismo mágico, mistério, non sense, Câmara consegue injetar emoção na vida do trágico Anselmo. Emoção que talvez seja o ápice da sua existência e que o tira do conforto e da visão gris dos seus dias. No conto, ele encontra êxtase, delírio e estupefação.
O final é de uma engenhosidade que desconcerta. Será difícil acabar a leitura desse conto sem ficar remoendo-o na cabeça durante dias. “Anselmo” levará o leitor a se espantar com a capacidade de Câmara para nos levar por caminhos impensados.
“Carol”, também. Apesar de, nesse caso, a forma encontrada paço mostra uma realidade sob um eelo autor para envolver o leitor tenha sido criar um espelho fragmentado, onde cada pednfoque diferente. São cinco contos, ou retábulos, mostrando diferentes destinos que a mesma história pode tomar.
CONTEÚDO NA ÍNTEGRA NA EDIÇÃO IMPRESSA
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