Leitura atravessada de um livro de poesia

José Nêumanne Pinto escreve poemas de lirismo vivo, sobre o amor, a vida, a morte e temas familiares, que pedem para virar canção

José Nêumanne Pinto é hábil ao falar tanto das coisas mais graves quanto das cotidianas
José Nêumanne Pinto é hábil ao falar tanto das coisas mais graves quanto das cotidianas

Um método interessante de percorrer o livro Antes de atravessar, de José Nêumanne Pinto, é lê-lo às avessas. Mas não em diagonal, ou como leitura dinâmica. Calma e lentamente, porque a poesia – a que mais se preza – integra a arte slow food. Começar pela página 159, onde está um epílogo de outrem em sua homenagem, até alcançar a 27, onde o poema-título se mostra como uma mescla de ode amorosa e elegia com um quê de filosofia.

Depois de ler, um a um, esses poemas, e feito uma recolha de suas pedras-de-toque, será útil visitar os comentários de Astier Basílio e Alexei Bueno, que prefaciam, apresentam o autor. Ambos coincidem em mais do que as iniciais AB: nas afinidades eletivas do lirismo vivo de JNP. Não esquecer que, sob a forma de verso, Dailor Varela também faz uma exegese microscópica quando se refere ao “sol que habita o homem Zé/ Herdeiro de retinas e sotaques”. Essas retinas e sotaques conformam o estilo do autor, que escande a prosa dos seus versos ora como fala, ora como canção.

Antes de atravessar mostra as ‘essências e medulas’ de um lirismo duplo, e, ao fim e ao cabo, é um conjunto de odes ao hibridismo tão brasileiro. Há poemas inteiros prontos para receber a melodia – remetendo às origens do gênero – e, também, aqueles da efusão do eu, como uma carta de amor. O amor é um dos temas centrais. Na intensidade contida, aqueles dedicados a Isabel respiram com um vigor coloquial em nada inferior aos do enfant terrible Oswald de Andrade para a sua Antonieta.

Uma parte considerável do livro ocupa-se de registros familiares. Toma o particular como pretexto para orquestrar assuntos universais, que ocupam os poetas desde sempre. Embora a maioria dos textos esteja construída sob a forma de redondilhas (maiores e menores), imperam o verso livre e o poema em prosa. Mesmo levando que, tratando-se deste, haja apenas um exemplo inteiriço, mostra o autor inegável virtuosismo nesse difícil gênero.

José Nêumanne Pinto maneja, conscientemente, a técnica. Conjuga-se nela plural. Inclusive as mais antigas, como as de mote e glosa. Dois exemplos: os poemas que remetem a Hildeberto Barbosa Filho e a Astier Basílio. No primeiro exercita um esboço de arte poética (algo que desenvolve em outros dos poemas do livro), no segundo elabora um buquê de imagens e exercita-se na retórica do verso, com suas assonâncias, aliterações, jogos de palavras. Por sinal, o homo ludens comanda JNP. Diz ele, no “comentário”, da p. 156: “O poema se desencontra/ se não se lava na larva clara/ da poesia”; e na “glosa”, da p. 157: “o esteta se estatela”; “Pisando em [...] brasas. [...] sátrapas”. Mais: “O nada/ arauta. À mancheia./ Em manchas de/ Rorschach// devolve o céu,/ o abutre do mesmo/ ferimento,/ um sangue por dentro/ de culatras.

Horácio, num conhecido verso, afirmou: “Odi profanum vulgus, et arceo”. Uma ojeriza explícita ao vulgar. JNP, não obstante, exercite com desenvoltura uma poesia culta, inclua nos seus versos referências eruditas da história, da literatura e da filosofia, não sofre de preconceitos. O seu livro tanto pode ser apreciado pelo leitor mais exigente de poesia quanto pelo mais comum dos mortais. Certamente isto pode ser entendido como uma qualidade positiva atualmente. O fato de que diversos dos seus textos tenham sido musicados e outros pareçam clamar por um músico que ponha neles melodia fala por si do interesse pela comunicação e a clareza da linguagem.

Talvez o poema em que a síntese do mais coloquial unido à referência clássica mais tenha sido levada ao extremo seja o que dá título ao livro. Com esse texto dá início ao conjunto intitulado “Poemas para Isabel”:

“Mulher, me diz aí
com quantos paus
se faz uma canoa
para cruzar o Hades
bem devagar,
devagarinho,
remanchando,
contando lorota pro barqueiro”

Temos aí o coloquialismo irônico herança dos inícios das vanguardas, conduzido com mão firme. O tema aí é a morte, ou, como diz o poeta, no último verso, em feliz aliteração: “no lado de além de lá.” Outro topos tão antigo quanto medieval, romântico e moderno é o da volta, que JNP percorre também recorrendo à aliteração: barco, berço, bote. Metáforas que se encontram com a temática da ‘travessia’: tanto faz se da morte ou da vida.

Há textos que enfocam algo como testamentos vitais, um balanço das coisas sonhadas e feitas. “Legado” é o exemplo mais evidente: “Haverá também entre os haveres/ meu coração combalido/ de tantos combates/ de amor, cansaço e fé,/ esperança, dor, ilusão;”

Os poemas do ciclo familiar também integram esse conjunto do que chamamos de testamento, mas pode ter outras formas de nomear.

O tom de confissão e confidência dos poemas de JNP faz sua poesia conduzir o leitor quase pedagogicamente – no sentido literal, etimológico da palavra. Seu lirismo é de meditação, de elegia, de adagio – não por acaso, se refere mais de uma vez ao adagietto de Mahler. Mas também de festa. Com todos os possíveis percursos e percussões. Poesia que ora sussurra, ora se exalta, conforme o tema escolhido. Mas, em geral, é como naquela profissão de fé bandeiriana:

“Tudo o que existe em mim de grave e carinhoso Te digo aqui como se fosse ao teu ouvido...”

Com os seus versos assim ao pé do ouvido do leitor, JNP pode falar das coisas mais graves ou cotidianas, com a mesma autenticidade. Mas, diferentemente de Bandeira, que chegou a afirmar “não faço versos de guerra,/ não faço porque não sei”, há em JNP a capacidade para os versos de guerra, ou seja, os textos mais longos, narrativos, quase esboços de coisas épicas ou dramáticas.

Como exemplo dessa última afirmação temos em Antes de atravessar o poema “Fundação do pai”, que podia ser usado teatralmente como um monólogo por algum realizador de talento. Texto sugestivo de uma cosmovisão, e até de uma leitura às avessas da conhecida afirmação de William Wordsworth: “De certa forma, um filho meu, que havia chegado antes de mim”.

Embora haja uma razoável quantidade de referências literárias e uma boa porção de intertextualidades, não é a metalinguagem o que predomina no livro. Talvez o seu tema predominante – insinuado no próprio título – não seja propriamente a morte, em si. Mas o jogo da vida e da morte. Ambas trabalhadas com parte tanto do repertório da natureza (biologia, química) quanto da cultura. A meditação sobre o tempo, o transcurso, a passagem... Antes havia um verbo poético para esse tipo de coisa: cismar. Integra uma morfologia que recende àquele tipo de filosofia somente possível sob a forma poética. Trágica e cômica, ao mesmo tempo. Especialmente sob a forma lírica, que é, por excelência, a do Eu, algo, aliás, versado pelo poeta:

A poesia
é o lugar comum,
onde o poeta
ri de si mesmo.

A poesia
é um pilar incomum
onde o poeta
cisma consigo mesmo.