Papa Francisco: a esperança que veio do fim do mundo

Ao escrever a primeira autobiografia de um pontífice, Jorge Mario Bergoglio deixa um testamento de uma vida dedicada os pobres, ao diálogo interreligioso e o caminho que a Igreja Católica deve seguir

A autobiografia de Jorge Mario Bergoglio foi escrita como um testamento do papa Francisco para fiéis e admiradores de seu estilo simples e de seu pensamento progressista, deixando expresso o caminho que a Igreja Católica deve seguir para construção do seu futuro, sem possibilidade de volta ao passado. Primeiro pontífice jesuíta e latino-americano, ao publicar Esperança foi também o primeiro papa a fazer uma autobiografia, elaborada ao longo de seis anos a quatro mãos com o editor Carlos Musso. Sua intenção inicial era deixar o livro como legado, após a sua morte. Decidiu antecipar o lançamento “pelas exigências do tempo” e para coincidir com o Jubileu de 2025 – “Spes non confusat” (“A esperança não decepciona”), cujo lema é: “Peregrinos da Esperança”.

Uma das três verdades teologais – ao lado da fé e da caridade – a esperança é a palavra-mote de sua vida e de seu pontificado. Permite que, em meio à adversidade, se busque a alegria de viver e encontrar o caminho da salvação, confiante em Deus. A ela se ligam a humildade – simbolizada na escolha do nome papal inspirado em São Francisco de Assis – e a misericórdia, quando se coloca ao lado dos mais pobres e marginalizados. Para o papa Francisco, o poder e a ganância alimentam as guerras, o sofrimento e a miséria, impedindo que se faça justiça e a paz se estabeleça.

Escrita de forma clara, franca, bastante crítica e lúcida, a autobiografia procura fazer o retrato de um homem comum que se tornou o papa “que veio do fim do mundo”, “servo do povo de Deus”. Alguém que levou uma vida ordinária e, ao entrar na adolescência, decidiu seguir a vida religiosa, ainda que tivesse que enfrentar, de início, a resistência da mãe, uma católica devota, mas que sonhava com um futuro mais promissor para o filho. É a jornada de Jorge Mario até tornar-se um dos mais carismáticos papas da história, responsável por mudanças importantes na Igreja Católica. Um apostolado que durou 12 anos e se encerrou com sua morte, no dia 24 de abril, um dia após o Domingo de Páscoa, quando fez sua última aparição pública no Vaticano, já bastante debilitado, para dar a bênção Urbi et Orbi e o derradeiro passeio de papamóvel pela Praça de São Pedro para cumprimentar os fiéis, contrariando as recomendações médicas.

“Uma autobiografia não é nossa literatura particular, e sim nossa bagagem. E a memória não é apenas o que lembramos, mas aquilo que nos cerca. Não fala apenas do que foi, mas também do que será.", escreveu o papa. O livro procura seguir uma cronologia, embora Francisco se permita a avançar ou recuar no tempo, a fim de inserir passagens que se relacionem com o andamento da narrativa.

A vinda da família Bergoglio, oriunda da herdade de Portacomaro, no Piemonte, Itália, para a Argentina, tem um quê de aventura, narrada em tom quase romanesco nos primeiros capítulos do livro. Fugindo de uma Europa devastada com a Primeira Guerra Mundial, os avós Giovanni e Rosa e o filho único Mario, pai do futuro papa Francisco, por um desígnio da sorte – ou da Providência Divina, como o autor prefere – escaparam do naufrágio na costa brasileira do vapor Mafalda. Por não conseguir vender os poucos bens que possuíam, tiveram que remarcar a passagem só de ida que já haviam comprado com destino a Buenos Aires, onde aguardavam os irmãos do avô Giovanni.

A viagem, enfim, se deu em 1º de fevereiro de 1929, pouco meses antes de estourar a Grande Depressão, com a quebra da Bolsa de Nova York em outubro, que abalou o mundo e levou à derrocada os irmãos Bergoglio, que haviam prosperado rapidamente na Argentina construindo estradas. As memórias familiares são evocadas com carinho e detalhes, recompondo as imagens afetivas de um álbum de família que o tempo não apagou.

Sendo descendente de imigrantes, compreende-se a preocupação do papa Francisco com o drama da crise migratória mundial contemporânea, um dos primeiros temas que aborda no livro, ao qual voltará em várias passagens, criticando “a globalização da indiferença”. Ele expressa gratidão aos voluntários solidários àquelas pessoas que deixam para trás suas raízes, sua identidade e bens. “Emigração e guerra são duas faces da mesma moeda. Como bem se escreveu, a maior fábrica de migrantes é a guerra. De um modo ou de outro, porque as mudanças climáticas e a pobreza também são, em boa medida, o fruto doente de uma guerra surda que o ser humano declarou: a uma distribuição mais justa dos recursos, à natureza, a seu próprio planeta”, afirma o papa. “O mundo hoje nos parece cada dia mais elitista, a cada dia mais cruel com os excluídos e os marginalizados”.

Ainda criança, ele ouviu do avô Giovanni, que esteve no front da Primeira Guerra Mundial, as histórias sobre “o horror, a dor, o medo, a absurda e alienante inutilidade da guerra. Mas também sobre a confraternização entre as tropas inimigas”. Ao visitar, já como papa, o cemitério que fica no Santuário de Redipuglia, na Gorizia, onde estão os despojos de 100 mil soldados italianos mortos na Segunda Guerra Mundial, Francisco chorou ao relembrar as histórias do avô. “A guerra é uma loucura; e seu plano de desenvolvimento é a destruição”, escreveu, e contra as guerras ele se insurge em seu pontificado e no testamento do livro. As guerras do passado, cujo horror revive ao visitar os campos de concentração nazistas e em Hiroshima e Nagasaki; e as guerras do presente, entre Rússia e Ucrânia ou no massacre na Faixa de Gaza.

Primogênito de Mario Giuseppe Bergoglio e de Regina Maria Savini, que tiveram cinco filhos, Mario Jorge cresceu numa família católica atuante, no bairro de classe média de Flores, em Buenos Aires. A convivência com amigos e vizinhos descendentes de imigrantes europeus, judeus e árabes (os muçulmanos e os “turcos”), povos de diversas etnias e religiões, cujas diferenças eram consideradas normais e respeitadas naquela época, foram importantes para que ele crescesse com uma visão ecumênica da Igreja e buscasse o diálogo entre povos que possuem desavenças históricas.

A presença frequente em sua casa do padre italiano Enrico Polozzi e a educação religiosa, que se deu com uma “simplicidade natural” na vida em família, ajudariam a despertar no futuro sua vocação sacerdotal: “era como uma língua, aprendia-se falar e aprendia-se a crer”, afirma. Para o papa Francisco, “a transmissão da fé se faz em dialeto, não com a superficialidade acadêmica ou livresca”.

O sacerdote Polozzi foi quem conseguiu uma vaga para ele e os irmãos Oscar Adrián e Marta Regina no internato. Para o jovem Jorge Mario, representou um momento de plenitude e descobertas, responsável também por desenvolver o hábito de estudar e de se concentrar num propósito.

Pata dura

No internato, o futebol era uma das principais diversões. Jorge Bergoglio era um garoto que gostava de jogar bola, embora confessasse ter “dois pés esquerdos”, ou seja, era um “pata dura” ou perronha. Talvez fosse melhor no basquete, o mesmo esporte praticado por seu pai. Era, acima de tudo, um devoto torcedor do time do San Lorenzo de Almagro. Uma paixão de família resultado do infarto que quase fulminou o pai, no estádio Viejo Gasómetro, durante a comemoração de um gol. Mário Bergoglio morreria pouco tempo depois em decorrência de problemas no coração.

Uma promessa feita à Nossa Senhora do Carmo, em 15 de julho de 1990, fez com que o cuervo do Boedo Bergoglio deixasse de ver o azulgraná San Lorenzo jogar. Em Esperança, a autobiografia, o papa Francisco não revelam qual a “imagem miserável” que viu na televisão naquele dia para que tomasse tal decisão. De qualquer modo, ele se informava sobre os acontecimentos pelo rádio de pilha e pelos jornais. Ao se mudar para o Vaticano, um dos guardas suíços passou a deixar em sua mesa toda semana o resultado e a classificação do seu time.

O carnaval também estava entre as alegrias de infância, compartilhada com os irmãos Oscar Adrián, Maria Regina, Alberto e Maria Elena (esta, a caçula, única viva), assim como as procissões da Semana Santa o aproximaram da religiosidade popular.

Despertar de uma vocação

Aos 17 anos, Jorge Mario era um jovem estudante típico de sua idade: frequentava as aulas e o laboratório de química, onde fazer curso técnico; ia aos jogos do San Lorenzo, gostava de estar entre os amigos, de passear e de acampar; e participava das atividades da Ação Católica e da paróquia, ajudando a mãe. No dia 21 de setembro de 1953, quando se comemorava a abertura da primavera, ele tinha marcado de fazer um passeio com os amigos, após ajudar uma senhora a receber a aposentadoria, a pedido de sua mãe. No meio do caminho, antes de pegar o bonde, sentiu-se atraído a entrar na igreja de São José, que frequentava aos domingos, e encontrou um padre que nunca tinha visto antes por ali – e resolveu se confessar. O papa Francisco não consegue explicar o que aconteceu naquele dia 21 de setembro, que é também o Dia de São Mateus, cuja conversão foi retratada por Caravaggio. Apenas que teve uma certeza: que se tornaria sacerdote. Uma ideia que já havia passado na sua cabeça de menino e que se foi com a chegada do verão, das férias     e do trabalho como faxineiro numa fábrica de meias de um amigo de seu pai para ganhar dinheiro e ajudar a família.

Ao longo de um ano e meio, essa certeza foi amadurecendo aos poucos, ao curso de muitas conversas com o padre, que se chamava Carlos Duarte Ibarra, um ex-artista de teatro, culto, que havia se convertido. Ele deixara Corrientes, na fronteira com o Brasil, para se tratar de um câncer – tinha leucemia. A morte do padre Duarte fez Jorge Mario chorar como nunca ocorrera. “Me senti completamente perdido, sozinho, abandonado, quase com medo de que Deus também tivesse me abandonado já que a única pessoa com quem havia compartilhado meus pensamentos se fora, um homem que me fazia sentir a misericórdia de Deus. E em vez disso, mais uma vez me vi diante da Sua misericórdia”. Em outras palavras: “Senti que o Senhor não me abandonou”, escreve, e que “abriu seu coração ao miserável”. Até decidir entrar para a vida sacerdotal, no entanto, ele viveu esse rito em solidão.

Francisco é discreto ao falar do passado, nada revela com relação a possíveis namoricos ou casos mais sérios da juventude. Diz que o casamento nunca lhe passou pela cabeça. Mas, no período em que estava para se decidir entre os dominicanos e os jesuítas, ele ficou balançado por “uma moça que conheceu no casamento de um tio”. Atraído pelo “brilho intelectual e beleza” dela, não conseguia sequer rezar “sem que sua imagem não me aparecesse continuamente”. Por fim, a vocação religiosa venceu. “Foi uma coisa normal; teria sido anormal, aliás, se não passasse por esse tipo de situação”, comenta.

O espírito de comunidade, o caráter missionário e a disciplina levaram Jorge Mario a escolher a Companhia de Jesus. Com os jesuítas, aprendeu os valores da obediência, humildade e austeridade. Esses valores moldaram o papa Francisco, na sua decisão de combater uma ala conservadora mais preocupada com a doutrina da fé, a glória e o poder eclesiásticos. As viagens realizadas pelo papa trazem o exemplo de sua atuação apostólica e pastoral, exprimem seu sentimento inconformismo e revolta ao ser confrontado com a realidade de quem passa fome e não tem acesso à saúde; daqueles que são vítimas da guerra, da tortura, de abusos contra mulheres e crianças; dos que não encontram outra saída a não ser emigrar.

Bagagem cheia de cultura

Na bagagem do papa Francisco a música sempre teve um lugar cativo. Desde jovem, adorava dançar milonga com as amigas e a dramaticidade do tango, que evoca tormento e impulso, nostalgia e esperança. “Um belo tango sabe fazer até o silêncio dançar”, filosofa, sobre o gênero de música popular preferido. A ópera era uma influência materna, assim como a música clássica de Bach, Schubert, Beethoven, Mozart, Wagner e Mahler, de quem tira a citação: “A tradição não é o culto às cinzas, mas a preservação das chamas”. Outra paixão do papa Francisco é o cinema, em especial, ele cita no livro, o neorrealismo italiano de Rossellini, De Sica e Visconti, e a fantasia de Fellini. Filmes como Roma cidade aberta e A doce vida “são tesouros capazes de inspirar” e “pedagogia do hoje”, no seu entender.

A literatura sempre esteve presente na vida do papa Francisco. Formado em filosofia, chegou a dar aulas de literatura e língua a alunos do ensino médio ao se ordenar jesuíta, nos Colégio de la Inmaculada Concepción (1964 e 1965), na província de Santa Fé no Colegio del Salvador, em Buenos Aires (1966). Não à toa, a autobiografia é repleta de citações, a começar, por óbvio, pela Bíblia. A lista de autores citados inclui dezenas de autores, como Jorge Luis Borges, Marcel Proust, Zygmunt Baumann, Eduardo Galeano, Fiódor Dostoiévski e Bertold Brecht, bem como o teólogo John Henry Newman, entre outros. Gostava também de quadrinhos, desde Patorozú, “historieta cômica mais popular na Argentina”, até Superman.

As reflexões do papa ao longo da autobiografia, escoradas em citações bíblicas e textos de papas antecessores, pulverizada por todo o livro, nunca são expressas de forma maçante ou proselitista, antes servem de inspiração e ilustração. Francisco expõe seu pensamento seguindo a teologia da cultura e do encontro – que busca um diálogo entre a religião e o mundo secular – deixando num plano secundário a teologia exegética, fechada em si, voltada para dentro da Igreja. O que conta para ele é a experiência de vida cotidiana e dos outros, do mundo conturbado em que vivemos e que precisamos enfrentar.

Momentos difíceis

Quando houve o golpe militar liderado pelo general Videla, que depôs Isabelita Perón, o padre Jorge Bergoglio era provincial da Companhia de Jesus e lecionava no Colégio Máximo de San Miguel de Córdoba. Este período marca sua participação nos bastidores para ajudar os perseguidos pela ditadura.

O papa enfrenta na autobiografia um tema que o incomoda: as acusações de que teria apoiado a ditadura ou sido omisso no caso dos padres jesuítas Orlando Yorio e Franz Jalics. Ligados à Teologia da Libertação e que atuavam em comunidades pobres, eles foram sequestrados e detidos durante cinco meses.  Na tentativa de conseguir a liberdade deles, o então provincial dos jesuítas chegou a rezar uma missa para o general Videla, como uma forma de chegar perto dele e solicitar que fizesse algo a respeito. Quando surgiu o boato de que tinham sido sequestrados por uma força-tarefa da Marinha, foi duas vezes à casa do almirante-chefe Massera e exigiu, furioso, bradando: “Quero que tragam vivos. Por fim, e por sorte, voltaram”.

Francisco relembra a morte de outros religiosos pela ditadura argentina, que foram beatificados por ele, como o monsenhor Angeleli e o padre Carlos de Dios Murias e o catequista Wenceslao Pedernera. Também perderam a vida as freiras francesas Léonie Duquet e Alice Domon, a irmã Caty, cujo corpo nunca foi encontrado. Ele cita outros casos em que intercedeu, junto a militares, e até vestindo de padre um jovem em fuga uruguaio, que lhe fora confiado por um sacerdote.

Uma das vítimas da ditadura teve uma importância na formação do futuro papa Francisco. Quando estudava na Escuela Técnica Especializada en Indústrias Químicas e se preparava para a vida religiosa, Jorge Bergoglio conheceu a médica bioquímica farmacêutica Esther Ballestrino de Careaga, que era sua chefe no laboratório. Ela influenciou na sua formação política ao lhe recomendar livros e incentivar a ampliar o conhecimento, além de lhe trazer o jornal comunista Nuestra Palavra. Perseguida pelos militares durante a guerra sucia, ela teve o genro sequestrado e morto pela ditadura e uma de suas filhas chegou a ser presa. Ela tinha 16 anos e estava grávida de três meses. Foi vendada, espancada, torturada e estuprada, sendo libertada após quatro meses.

Esther, que havia denunciado a prisão da filha à imprensa e à ONU, procurou o ex-estagiário Bergoglio para pedir ajuda. Precisava esconder os livros de sua biblioteca, muitos deles marxista, riscados, anotados. Com um furgãozinho, o provincial dos jesuítas entrou em ação, recolheu as obras da biblioteca e as levou para o depósito do Colégio Máximo, onde lecionava. Esther, que integrou o grupo das Mães da Praça de Maio desde o começo, foi sequestrada poucos meses depois pela polícia política e assassinada. Seu corpo foi encontrado junto com mais duas fundadoras das Mães da Praça de Maio, Azucena Villaflor e Maria Ponce de Bianco, da colaboradora e ativista Angela Auad e da irmã Léonie.

Em sintonia com a alma do povo 

Por ser um papa de origem latino-americana, Francisco se empenhou em trazer a Igreja Católica para as suas origens, ao lado do povo e dos pobres, em realizar o “sonho de uma Igreja que seja mais mãe e pastora”, que deve buscar novos caminhos. Não pode ficar trancada em gabinetes, ser autorreferenciada ou sofrer de “narcisismo teológico”. Deve sair de si mesma em direção às periferias existenciais, ir às ruas e estar aberta à escuta. Isso exige uma mudança de postura dos bispos e o reconhecimento da “espiritualidade popular”. O papa defende que a Igreja viva o Evangelho “de maneira concreta ao lado de quem sofre, dos que têm a dignidade e os direitos subtraídos”. Para ele, os fiéis vêem nessa espiritualidade “um lugar teológico, um trampolim para a emancipação e transformação”.

A espiritualidade popular não pode ser confundida com a mundanidade espiritual. Esta “se esconde por trás de aparências de religiosidade e até mesmo de amor à Igreja”, escreve o papa na exortação apostólica “Evangelii gaudium” (“A alegria do Evangelho”). A mundanidade espiritual “busca, em vez da glória do Senhor, a glória humana e o bem-estar pessoal”.

“Entrar em sintonia com a alma do povo é um antídoto a toda forma de populismo sectário que reduz a alma a um elemento faccioso e ideológico. É uma forma de aproximação que não tem origem na distância, que nasce no caminhar juntos”, escreve o papa. “O povo é sujeito. A Igreja é o povo de Deus no caminho da história, com alegria e dores”. Defendia também uma Igreja que fosse mais inclusiva. "Todos são convidados à Igreja, inclusive pessoas divorciadas, homossexuais e transgêneros", escreveu ele em sua autobiografia, causando ira na ala conservadora do clero defensora da família patriarcal tradicional, que considerava essa posição uma heresia.

O papa trabalhou para que a Igreja seja “o rosto cada vez mais autêntico da universalidade" e impulsionou uma renovação, nomeando, 21 cardeais, somente em 2024, em países como Peru, Argentina, Equador, Chile, Japão, Filipinas, Sérvia, Costa do Marfim, Irã, Canadá, Austrália bem como na Itália, recomendando que “que o título de ‘servo’ – esse é o sentido do ministério – deve ofuscar cada vez mais o de ‘eminência’”.

As crises que Bento XVI não suportou foram encaradas por Francisco. Os casos de pedofilia começaram a ser investigados mais a fundo, com punições de autoridades eclesiásticas. Conseguiu estancar os escândalos financeiros, afastando até cardeais de quem era próximo, para equilibrar as finanças do Vaticano. Nesse reordenamento da Igreja Católica, abriu mais espaço para as mulheres, que passaram a assumir mais cargos na alta hierarquia da administração.

O conclave

Quando Bento XVI abdicou, o cardeal Bergoglio fez as malas e deixou Buenos Aires. Comprou passagem de ida e volta, deixou uma bagunça para trás e as homilias que tinha preparado para o Domingo de Ramos e para a Quinta-feira Santa, pois imaginava que nenhum pontífice tomaria posse na Semana Santa.

No conclave anterior, que elevou o cardeal Ratzinger a papa, o sacerdote argentino chegou a ter 40 votos num dos escrutínios e terminou se retirando da disputa para que o sucessor de João Paulo II fosse eleito. Em 2013, ele sabia que era um kingmaker, “que como cardeal latino-americano, tinha autoridade para direcionar um número de votos para algum candidato”.

Francisco relata alguns episódios do conclave que o elegeu e que poderiam indicar seu futuro, que começou a ser delineado após uma fala de improviso numa das congregações gerais preparatórias, que chamou a atenção de alguns cardeais, entre eles o arcebispo de Havana, James Lucas Ortega, que pediu uma cópia do discurso, e que Bergoglio teve que refazer de cabeça, pois não o tinha impresso.

O nome do cardeal Bergoglio começou a ganhar força no quarto escrutínio do conclave, quando obteve 69 votos de 115. Os demais ele não revelou para quem foi. Mais oito votos, estaria eleito papa. O quinto escrutínio foi anulado porque descobriu-se que havia duas cédulas coladas, ao fazerem a contagem. Tudo foi queimado sem que houvesse feito a leitura dos votos e uma nova votação ocorreu em seguida. “Quando meu nome foi pronunciado pela septuagésima vez, explodiu um aplauso, enquanto a leitura dos votos continuava. Não sei quantos foram exatamente no final, não conseguia ouvir mais nada, o barulho cobria a voz do escrutinador”. Foi nesse momento que o cardeal franciscano brasileiro D. Claudio Hummes, que estava à sua esquerda, levantou-se, bateu em suas costas e disse a célebre frase: “Não se esqueça dos pobres”. “Aquela frase me marcou, eu a senti em minha carne”, contaria depois o novo papa. “Foi ali que surgiu o nome Francisco”.

Conhecido pelo seu bom humor, o cardeal Bergoglio ao ser apresentado como novo papa afirmou que os irmãos cardeais foram buscá-lo “no fim do mundo” para liderar a Igreja Católica. Para o papa Francisco, “mau humor nunca foi sinal de santidade; muito pelo contrário”. Por outro lado, “o humor é sabedoria autêntica. E é relação, porque é sempre fácil rir junto com outras pessoas e quase impossível de fazê-lo sozinho”. Esse espírito de leveza e de saber rir também de si mesmo, é o que ele apregoa. "A ironia é remédio, não somente para elevar e iluminar os outros, mas também para si mesmo, porque a autoironia é um instrumento poderoso para superar a tentação do narcisismo", escreve na autobiografia. O papa conta no livro algumas anedotas, das quais não escapam nem os jesuítas e chega a citar um antecessor bem-humorato, o papa João XXIII. O ensinamento que ele quer deixar é que “o humor e o sorriso são o fermento da existência e o melhor instrumento para enfrentar as dificuldades, até mesmo as cruzes, com resiliência”.

O papa Francisco sabia de suas limitações físicas e do peso da idade. Reconhecendo-se velho, diz que nada o alegra mais do que o riso das crianças: "fomos feitos à imagem de Deus, e nosso Deus sorri”. Havia também muita esperança nos jovens. Logo em sua primeira viagem internacional para participar da Jornada Mundial da Juventude, ele conclamou: "Peço que vocês sejam revolucionários, peço para vocês irem contra a corrente, peço que se rebelem contra essa cultura do provisório. Tenho confiança em vocês em irem contra a corrente. Também tenham a coragem de ser felizes". É na juventude que ele deposita a esperança da renovação da Igreja Católica, ao mesmo tempo em que encarava com naturalidade a finitude da vida e revela o horror ao sofrimento físico. Havia, então, tomado todas as decisões relacionadas a sua renúncia por incapacidade ou morte. O testamento já estava feito, simplificando o ritual das exéquias, expressando o desejo de ser sepultado num caixão simples de madeira e zinco, na Basílica de Santa Maria Maior, em Roma, contrariando a tradição de repousar o corpo em um caixão hermético feito de cipreste, chumbo e carvalho, no mausoléu da Basílica de São Pedro, onde estão os corpos de mais de uma centena de papas. Não cairia bem como o último figurino de um papa que viveu a vida de forma simples e humilde.