Aos 89 anos de idade, a poeta mineira Adélia Prado recebeu dois dos mais importantes prêmios da literatura de língua portuguesa, quase ao mesmo tempo. Em junho do ano passado recebeu o Prêmio Machado de Assis e o Camões. Às vésperas de completar meio século de estreia, com Bagagem, ela tem sua obra reeditada pela Record.
Foi em outubro de 1975 que o poeta (também mineiro) Carlos Drummond de Andrade recebeu uma coletânea original de poemas escritos por uma mulher de 40 anos, mãe de cinco filhos, chamada Adélia Luzia Prado de Freitas. Sem conhecer aquela estreante, ele escreveu no Jornal do Brasil: “Adélia é lírica, bíblica, existencial, faz poesia como faz bom tempo. (...) Adélia já viu a Poesia, ou Deus, flertando com ela. Adélia é fogo: fogo de Deus em Divinópolis”.
Drummond repassou o manuscrito para o editor Pedro Paulo de Sena Madureira, que o publicou pela editora Imago. No evento de lançamento, além de Drummond, estavam presentes autores como Clarice Lispector, Nélida Piñon, Antônio Houaiss e Affonso Romano de Sant’Anna, a quem Adélia havia enviado seus poemas antes de submetê-los a Drummond.
Sua obra de estreia trazia já algumas das características que persistem. A religiosidade, as vivências femininas, as experiências no interior de Minas Gerais e os pensamentos que emolduram o envelhecer.
A escrita de Adélia Prado expõe a sua conexão com a vida pacata que leva em Divinópolis, cidade a cerca de 110 quilômetros de distância de Belo Horizonte, onde vive até os dias de hoje. Foi ali que nasceu, no dia 13 de dezembro de 1935, cresceu, casou-se, teve filhos e os criou. Estudou filosofia juntamente ao seu marido, José Assunção de Freitas, formando-se em 1973 pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Divinópolis e a utiliza em seu favor na escrita.
Ler Bagagem é como se ajoelhar em posição de oração na igreja aos domingos, tomar um café com bolo caseiro na sala de estar da avó, ser criança e caçar borboletas no jardim de casa.
Dividido em cinco blocos, Bagagem reúne poemas germinados desde os 20 anos e que, por cerca de duas décadas, dormiram na gaveta. No poema “Explicação de poesia sem ninguém pedir”, Adélia escreve: “Um trem é uma coisa mecânica,/ mas atravessa a noite, a madrugada, o dia,/ atravessou a minha vida,/ virou só sentimento.”
“Leitura”
Era um quintal ensombrado, murado alto de pedras.
As macieiras tinham maçãs temporãs
a casca vermelha
do escuríssimo vinho, o gosto caprichado das coisas
fora do seu tempo desejadas.
Ao longo do muro eram talhas de barro.
Eu comia maçãs, bebia a melhor água, sabendo
que lá fora o mundo havia parado de calor.
Depois encontrei meu pai, que me fez festa
e não estava doente e nem tinha morrido, por isso
ria, os lábios de novo e a cara circulados de sangue,
caçava o que fazer para gastar sua alegria:
onde está meu formão, minha vara de pescar,
cadê minha binga, meu vidro de café?
Eu sempre sonho que uma coisa gera,
nunca nada está morto.
O que não parece vivo, aduba.
O que parece estático, espera.
Em “Leitura”, a identidade filosófica e sentimental da poeta reverbera. Ela regressa à infância. Quando escreve que “comia maçãs” enquanto “o mundo havia parado de calor”, demonstra a discrepância entre o seu mundo interior e o exterior. A melancolia da perda do pai toma forma em seus versos e, com a inocência de uma criança que encara o mundo, fala de um momento no tempo em que a figura paterna “não estava doente e nem tinha morrido”.
Escolhendo palavras tão ordinárias, ela ainda assim é capaz de criar um poema onírico que se comunica com a renovação e a crença de uma vida após a morte. Ao utilizar-se de metáforas para finalizar o poema, a visão soturna se substitui por uma forte certeza religiosa. Em poemas como “Verossímil”, a volta à infância também se apresenta como ilusão central, mas, dessa vez, carrega um peso maior de memória, como um poema que escorrega pela ponta da caneta diante de uma chuva de afeição.
“A serenata”
Uma noite de lua pálida e gerânios
ele viria com boca e mão incríveis
tocar flauta no jardim.
Estou no começo do meu desespero
e só vejo dois caminhos:
ou viro doida ou santa.
Eu que rejeito e exprobo
o que não for natural como sangue e veias
descubro que estou chorando todo dia,
os cabelos entristecidos,
a pele assaltada de indecisão.
Quando ele vier, porque é certo que vem,
de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?
A Lua, os gerânios e ele serão os mesmos
- só a mulher entre as coisas envelhece.
De que modo vou abrir a janela, se não for doida?
Como a fecharei, se não for santa?
“A serenata” é um dos muitos textos de Adélia em que a experiência feminina é retratada poeticamente. Revelando narrar um encontro romântico desde o título, o poema se desenvolve com a dualidade entre a inocência e o desejo, com aquilo que se espera de uma “boa” mulher e a vontade de libertar-se das visões patriarcais e tradicionalistas em prol da liberdade de amar.
Tendo certeza de que seu amado virá lhe fazer uma serenata, como ressalta no verso “porque é certo que ele vem”, o que deve fazer a voz narradora de Adélia Prado? Ser louca e se entregar ao seu desejo, ou ser santa, e diminuir a si mesma a fim de seguir as regras? São questões que ela traz para o poema.
A presença da figura feminina é uma constante na literatura da escritora mineira, e, entre religiosidade e sexualidade, seus versos são como brasa ao retratar e misturar seus conceitos.
Bagagem é uma obra sobre a grandeza na pequenez, uma ode requintada sobre as fases da vida e os sentimentos que prenunciam a maturidade.
Além de Bagagem, obras da poeta também foram editadas e relançadas pela Record quase simultaneamente: os livros de poesia Terra de Santa Cruz e O pelicano e o romance O homem da mão seca, todos com o design de capa assinado por Leonardo Iaccarino sobre telas da artista plástica Manoela Monteiro.
Terra de Santa Cruz foi originalmente o terceiro livro lançado por Adélia Prado, cinco anos depois de sua estreia com Bagagem e três anos após sua consolidação como autora, através da publicação de O coração disparado. Assim, lançado em 1981, esta obra fecha a “santíssima trindade” do modo poético de Adélia Prado, como foi dito pelo crítico de literatura, jornalista e professor Augusto Massi.
Nela, as particularidades da linguagem de Adélia se tornam ainda mais profundas. Os seus pensamentos e reflexões acerca da morte ganham lugar de destaque. Utilizando-se da religiosidade e, até mesmo, de pequenos toques de escatologia, desmembra a familiaridade daquilo que é universal.